Infantojuvenil,
Jogos de leitura
Parceria entre escritor e ilustradora induz pais e filhos a brincar de ler e criar histórias alternativas
01dez2019 | Edição #29 dez.19/jan.20Em A menina que morava no chuveiro, o escritor Antonio Prata repete com a ilustradora Talita Hoffmann a parceria de sucesso de Jacaré, não!. Esse segundo trabalho sobe “um tiquinho, um tiquinhozinho” a faixa etária alvo do primeiro livro, sem perder sua principal qualidade: a liberdade com que os criadores se apropriam da lógica da criança no uso das palavras, frases e ilustrações para contar a história e propor uma espécie de jogo com os leitores.
A premissa é simples, uma situação que faz parte do cotidiano de muitas famílias: uma criança se recusa a fazer algo que os pais querem que ela faça. No caso, sair do banho, que é a coisa que ela mais adora, “mais do que bolo de chocolate, mais do que geleca na mão, mais do que castelo na areia”, e por aí vai. Mas não se trata de uma recusa qualquer. A garota decide morar na banheira para sempre. E dá todos os argumentos para ali permanecer.
Para não perder a escola, por exemplo, propõe chamar a professora e os amigos para terem aula “debaixo do chuveiro, todo mundo de maiô ou de biquíni ou de shorts ou de sunga ou pelado mesmo, se quiser!”. Os pais tentam debater de acordo com a mesma lógica. “E a lousa, filhota?” Tremendo desafio, porque no repertório da imaginação da garota tudo é possível: “Não precisa de lousa, gente! A professora escreve no vapor do vidro!”.
No mesmo trecho, a ilustração assume o ponto de vista de dentro do chuveiro, tudo embaçado, o dedo da garota desenhando no vidro do boxe. Através do vapor, detalhes do banheiro, os pais do lado de fora. Tudo isso sem nenhuma pretensão ao realismo: chapado, com traços simples, bem coloridos. Um dos brinquedos da garota, um polvo, está lendo uma espécie de cartilha de alfabetização, como a comprovar que sim, é totalmente possível viver e estudar no banho.
É importante destacar que a simplicidade apontada aqui não é aquela que se opõe à sofisticação: há algo de “cubista” no estilo da ilustração. Apesar do aspecto bidimensional dos desenhos, a quarta dimensão, o tempo, consegue ser simbolizada, como no trecho em que a garota pede só mais “um tiquinhozinhozico”. O mesmo vale para a construção do texto, fluida e consciente de cada detalhe.
Muito bem construído em todos os sentidos, o livro embarca nessa lógica absurda, livre, lúdica, que vem desde o desejo inicial de Lina, a personagem central, e atravessa toda a sua argumentação. Há aí uma grande apropriação dessa linguagem — que vai além do talento para escrever e desenhar que ambos, autor e ilustradora, têm de sobra. É a sensibilidade de compreender as “regras do jogo” do mundo infantil e a partir delas propor um universo.
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Conversa
Algo que já ocorria em Jacaré, não! e que aqui se repete é o que está além das palavras e ilustrações: o jogo com os leitores. Falo especificamente do ponto de vista de um pai ou de uma mãe que lê para seus filhos. Ou de professores que leem para os alunos. Enfim, falo da experiência de entrar em contato com esse mundo criado por Prata e Hoffmann através de uma leitura que, de alguma forma, espelha a própria história que eles contam: adultos conversando com crianças.
Por todos esses recursos de estilo, a criança se sente totalmente à vontade para interagir, formular, jogar com o livro e o adulto que conta a história para ela. Seja criando argumentos para sair ou não do chuveiro, seja listando coisas que gosta de fazer tanto quanto tomar banho, seja apontando detalhes absurdos do desenho (e são tantos!). São muitas possibilidades de interação, e cada uma delas ramifica a história para um caminho diferente, criando novos sentidos.
É aí que a experiência de ler o livro se torna um jogo instigante com a criança. E, para além da história e das ilustrações, é nesse jogo que mora a arte.
Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social
Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.