Infantojuvenil,
As verdades de Pinóquio
A história do boneco que vira menino é recontada em três versões belamente ilustradas
01out2019 | Edição #27 out.2019O que todos sabem sobre Pinóquio é que o boneco de madeira criado por Gepeto, assim que ganha liberdade, passa a viver uma série de aventuras ao lado de “más companhias”, não dá a mínima para os conselhos do Grilo Falante — sua “consciência” — e enrola-se numa mentira atrás da outra, quando o seu nariz cresce. O que talvez poucos saibam sobre o personagem criado pelo italiano Carlo Collodi (1826-90) é que na versão original, publicada de forma seriada em 1881, num jornal semanal italiano, Pinóquio acabava enforcado por assassinos, em uma árvore gigante. Devido à grande popularidade do personagem, o editor de Collodi pediu-lhe que continuasse a história.
Em 1882, Collodi voltou a publicar os capítulos semanalmente no jornal e, em 1883, transformou-o em livro. A partir daí, Collodi se dedicou ao que seria, ainda, uma terceira continuação da novela, espécie de “Pinóquio ao contrário, que recusa a metamorfose em homem”, segundo nos explica Italo Calvino (1923-85), no posfácio da edição da Sesi-sp Editora. Nesta primorosa e extensa edição, o leitor encontra tanto a primeira versão quanto a continuação.
Leitores de diferentes gerações insistem em ressuscitar a liberdade de Pinóquio, seu desejo insaciável por aventura, sua ingenuidade repetidas vezes surrupiada por espertalhões, sua frágil identidade. Penélope Martins, autora de Aventuras de Pinóquio em versos, compartilhou com a Quatro Cinco Um que Pinóquio foi um marco em sua infância. Ela chorava com a versão em anime de 1972, da Tatsunoko Studio, exibida no Brasil na década de 1980. “Resolvi dar uma versão da história eliminando uma consciência externa que traz culpa, deixando o menino descobrir um caminho para si mesmo e reservando para a infância um lugar de brincadeira e aprontices”, contou.
Jogo de espelhos
A história de Pinóquio ganha fluidez e leveza nos versos de Martins. As ilustrações de Alexandre Camanho reiteram a perspectiva burlesca do texto, e a caprichada edição em capa dura confere ainda mais beleza ao livro. É uma leitura prazerosa, porque convoca à percepção mais do que a qualquer prejulgamento moral da personagem. Uma ode à infância, na qual os grilos falantes não gritam ordens castradoras, mas sussurram lembretes preciosos.
Para Alexandre Rampazo, autor e ilustrador de Pinóquio: o livro das pequenas verdades, a origem do livro veio — pasmem! — de Blade Runner: O caçador de androides (1982). Depois de assistir ao filme algumas vezes, Rampazo identificou uma problemática existencial muito próxima à de Pinóquio. “Para mim, pareceu claro que a história do Pinóquio não é sobre uma criança que mente e, sim, sobre uma criança que procura o tempo todo se adequar ao que os outros pensam ou esperam que ela seja. A partir disso, proponho esse jogo de espelhos em que Pinóquio se mira no outro, desejando ser o que não é por ser ‘somente um pedaço de madeira’”.
O espelho é determinante em todas as versões de Pinóquio aqui presentes. “Depois foi olhar-se no espelho e lhe pareceu que fosse outra pessoa”, escreve Collodi nas páginas finais, traduzidas por Ivo Barroso. O desejo de ser outro pode explicar boa parte das encrencas nas quais se mete. Pode traduzir também o simples desejo de ser criança, na perspectiva de Penélope Martins.
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Com beleza plástica e profundidade filosófica, a perspectiva da “outridade” ganha materialidade no livro de Rampazo. A cada página, encontramos uma imagem de Pinóquio diante do espelho, vendo-se outros. Como seria se fosse Gepeto? E se fosse o Grilo Falante, a Fada Azul ou um mestre de marionetes? O jogo segue, até que Pinóquio se pergunta como seria se fosse “uma árvore que sonhava”.
Desdobra-se aí não apenas a página, que cresce junto com o nariz feito tronco, mas também o jogo infinito de se imaginar outros. Alimentado desse sonho projetivo, o Pinóquio de Rampazo se torna real. A imagem que prevalece é a palavra escrita. Palavra libertadora de simulacros, pois livra Pinóquio da sentença moral impiedosa do enforcamento na árvore gigante e, enquanto imagem, faz do seu nariz galho, de em que brotam folhas novas e do qual saltam aves coloridas
para outros voos.
Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social
Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.
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