Infantojuvenil,
A revolução não será digitalizada
Enquanto novos leitores não chegam, o debate público sobre literatura infantil derrapa na exaltação aos formatos digitais
13nov2018 | Edição #6 out.2017“Não acredito que ainda tenho que protestar por causa disso.” Com força de meme, a palavra de ordem volta e meia irrompe nas manifestações de rua para reivindicar direitos que há muito deviam estar consolidados no país. Entre todos eles, um dos menos palpáveis — e por isso mais vulneráveis — é o direito à leitura.
Ou, melhor dizendo, os direitos do leitor, como escreve Patricia Auerbach em seu novo livro, lindamente ilustrado por Odilon Moraes. Se defender o direito à leitura, em abstrato, é cansativo, os direitos do leitor são muito concretos, humanos e palpáveis. Patricia inspirou-se nos Direitos Imprescritíveis do Leitor, que Daniel Pennac listou em Como um romance:
1. O direito de não ler.
2. O direito de pular páginas.
3. O direito de não terminar um livro.
4. O direito de reler.
5. O direito de ler o que bem entender.
6. O direito ao bovarismo.
7. O direito de ler em qualquer lugar.
8. O direito de ler vários livros ao mesmo tempo.
9. O direito de ler em voz alta.
10. O direito de se calar.
Nas mãos de Patricia e Odilon, os direitos de Pennac se desdobram no direito a “ser o herói”, a “escolher o personagem principal”, também a decidir “quando e como quer ler”. Direitos à liberdade e sobretudo à transgressão. Todo mundo no livro é herói: o menino e a menina que leem, e também os personagens que vão surgindo livro adentro. Chapeuzinho Vermelho, o pequeno herói de Onde vivem os monstros e a turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo bagunçam juntos nas ilustrações. A força transgressiva da leitura é afirmada sem demagogia nem discursos vazios. Patricia já se dedicara a outra causa transgressiva, a dos jornais, em um trabalho anterior, apresentando às crianças um objeto cuja suposta extinção vem sendo apregoada com certo gozo, assim como a dos livros impressos.
Políticas públicas
Na última Bienal do Rio, o governo federal ergueu um vistoso estande para celebrar vinte anos de políticas públicas de compra de livros. A grandiosidade contrastava com a implacável redução, em todos os níveis de governo, das compras de livros para uso em escolas e bibliotecas. Essas políticas, regularmente expandidas desde o governo FHC até o início do primeiro mandato de Dilma, deixavam as autoridades orgulhosas — e também os editores, que expandiram suas linhas infantis. Editais fomentaram a edição de livros de aceitação mais difícil no mercado, e assim produzimos bons livros sobre diversidade, cultura afrobrasileira e indígena e poesia. Exemplos de como boas políticas públicas podem induzir ao desenvolvimento cultural e econômico de um setor estratégico para um país com as ambições do Brasil.
Mas, como numa peça de Beckett, continuamos a esperar o leitor, essa figura que nunca vem, e a cada dia parece mais certo que não veremos o Brasil se tornar um país de leitores tão cedo. Com a última pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Instituto Pró-Livro, comemorou-se um discreto aumento no número de leitores — explicado pela chegada de gente que lê no celular. Temos motivos para comemorar ou isso não passa de pensamento positivo?
Mais Lidas
Um estudo recentemente publicado por Regina Zilberman e Marisa Lajolo, grandes especialistas em literatura infantojuvenil, faz um balanço da produção nos últimos trinta anos — não é coincidência, aliás, que o amplo desenvolvimento do livro infantil tenha coincidido com a restauração democrática no país. A hábil articulação de dados de mercado, questões políticas, culturais e literárias faz de Literatura infantil brasileira: uma outra história uma leitura essencial para quem se interessa pelo tema.
Decepciona, porém, certa expectativa pela superação do formato do livro. Fala-se em “literatura além do livro”, forma artística que estaria mais nos pixels dos devices que nas fibras da celulose. Uma das mais belas defesas já feitas desse incrível objeto, o álbum infantil É um livro, de Lane Smith, que procura despertar espanto em torno de um objeto aparentemente banal, é vista como “argumentação monolítica”. “Não é mais possível falar do livro com segurança”, escrevem mais adiante, “já que novas tecnologias impuseram novos formatos e materiais”.
“O dado novo […] é a literatura infantil […] prescindir do livro.” Em outro ponto, fala-se em “textos à moda antiga”, ou seja, que não estão em blogs, sites ou redes sociais. Um nativo da celulose não tem como não se sentir também obsoleto, uma espécie de Ruy Barbosa do século 21.
Roger Chartier, no prefácio, enxerga no digital uma espécie de superação — e o termo escolhido para qualificar o livro tal como o conhecemos, “absolutismo”, sugere que pertencemos a um tipo de Ancien Régime. O que no fundo ele sugere, embora talvez não perceba, é a rendição ao absolutismo do Vale do Silício: “O site substitutiu o livro, a liberdade do leitor, que pode escolher entre opções narrativas, ao absolutismo do texto, e, muitas vezes, a gratuidade do acesso ao comércio editorial”. Como se alguém não fosse pagar os custos econômicos e ambientais da vida digital.
Entende-se o desejo de enxergar o futuro e pertencer a ele: de fato, soa up-to-date decretar a obsolescência do impresso e contemplar a aurora de uma nova vida. Mas nada indica que, no caso do livro infantil brasileiro, a revolução será digitalizada. E não só porque não se observa crescimento na produção e no consumo de livros digitais, conforme indica o recente Censo do Livro Digital Brasileiro. O investimento em digitalizar livros infantis é praticamente inexistente. Pudera: não há demanda.
Exaltar uma produção digital que mal existe e nem sequer circula é como dobrar a aposta naquele leitor potencial que jamais chega. No contexto atual de ameaça ao livro (qualquer livro) — cortes de políticas públicas, invasão de livros-brinquedo e de títulos de franquias de desenho animado, livros de pelúcia que não têm nem crédito de autoria — e sem investimentos públicos ou do mercado no livro digital, esse discurso só contribui para manter as bibliotecas vazias de livros e de frequentadores. E ajuda governos a se liberar da obrigação de proporcionar à população esses objetos tão obsoletos.
Não se trata aqui de demonizar os recursos digitais — cujas contribuições à criação literária e editorial ainda precisam ser mais exploradas. Entre nós, a revolução da celulose, a intimidade com o papel, ainda não se cumpriu e é a mais urgente.
Não acredito que ainda temos que protestar por causa disso.
Especial Infantojuvenil: oferecimento Itaú Social
Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.
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