Repertório 451 MHz,
Erótica: uma conversa sobre aquilo
A crítica literária Eliane Robert Moraes e o editor Paulo Werneck discutem a presença do sexo na literatura brasileira do último século
25nov2022 | Edição #63Ouça mais Episódios
Está no ar o 76º episódio do 451 MHz, o podcast da revista dos livros. A crítica literária Eliane Robert Moraes conversa com Paulo Werneck sobre a presença do sexo na literatura brasileira do último século. A partir de contos de escritores clássicos e contemporâneos, eles debatem múltiplas formas de erotismo, jogo de palavras, sexualidade na identidade nacional, moralismo e liberdade criativa. Pesquisadora de literatura erótica, Moraes está lançando a antologia O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022) pelo selo Pernambucano da Editora Cepe.
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Vamos falar sobre aquilo
Eliane Robert Moraes é professora, crítica literária e pesquisadora de literatura erótica. Ela está lançando O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022) pelo selo Pernambuco da Editora Cepe. Um trabalho importante, que joga luz sobre um aspecto pouco falado da nossa cultura, ao menos no campo dos estudos literários.
Para estudar a presença do erotismo na literatura brasileira, Moraes precisou organizar sua própria antologia. Pesquisas sobre a presença de questões do corpo e do erotismo na literatura eram escassas, um terreno praticamente virgem no Brasil até então. “No Brasil, a gente pode ser muito solto, isso e aquilo, mas na hora de pensar o livro erótico, tem uma coisa de resguardar”, comenta a crítica literária.
Em 2015, Eliane Robert Moraes publicou a Antologia da poesia erótica brasileira, pela Ateliê Editorial, depois, o primeiro volume da antologia atual O corpo descoberto: contos eróticos brasileiros (1852-1922), lançado pela Cepe em 2018 — e resenhado pela escritora Verônica Stigger na Quatro Cinco Um.
Eliane Robert Moraes [Renato Parada]
Recentemente, são crescentes as leituras do cânone literário a partir do erotismo e o espaço do erotismo na literatura está sendo reivindicado. A crítica conta que a pesquisa para a antologia não foi difícil, difícil foi a seleção de coisas para fechar em 600 páginas. Por causa desse último lançamento, ela foi fotografada por Renato Parada para a coluna Folha de Rosto da edição 58 da revista dos livros.
Finíssimos pornógrafos
A antologia é dedicada a Hilda Hilst e Sérgio Santanna — “finíssimos pornógrafos”, nas palavras da organizadora. O livro abre e fecha com escritos de Sant’Anna, morto pela covid-19. “[Sérgio Sant’Anna] fala coisas sobre sexo que todo mundo tinha que ler”, comenta Eliane Robert Moraes, que lê um trecho de seu conto “O sexo não é uma coisa tão natural” no episódio.
Hilda Hilst também gostava do assunto e foi uma grande pesquisadora dos termos obscenos, abundantes em sua obra, como em O caderno rosa de Lori Lamby. “Nossos grandes escritores foram os mais obscenos — Hilda Hilst foi mais obscena que Cinquenta tons de cinza”, brinca Robert Moraes.
Desde 2015, estudiosos têm trazido à tona a obra erótica de Mário de Andrade, assim como aspectos de sua vida, como o faz César Braga-Pinto. Em 2022, Moraes lançou Seleta erótica de Mário de Andrade, pela editora Ubu, um conjunto de escritos eróticos do escritor paulista, ficcionado e estudioso do erotismo.
A crítica literária observa como os estudos da obra de Mário de Andrade levaram tempo para se debruçar sobre esse aspecto: “Na obra, não é nada escondido”. O turista aprendiz traz o sexo como elemento pulsante e Macunaíma vai além do erótico. “Tratando-se de um escritor homossexual, esse elemento pode ter feito ficar ainda mais escondido nos estudos. Havia um cuidado excessivo”, diz ela.
Moraes e Werneck convidam a pensar sobre como lidamos com o mundo erótico e sobre como a moral muda a forma como lemos a literatura. Eles também comentam como a valorização moral do sexo se transformou, como pontua a crítica literária: “Não significa ‘liberou geral’ ou uma falta de estranhamento do sexo, mas as perguntas que faremos do sexo agora são diferentes”.
Preliminares
Eliane Robert Moraes conta que, para organizar a antologia, se inspirou em Carlos Drummond de Andrade, que organizou sua obra não em ordem cronológica, mas em temas que considerava específicos de sua produção. A crítica literária se apoiou em tópicas eróticas recorrentes ao longo da história e outras mais inusitadas para cada bloco.
Abrindo as nove seções está “A coisa em si”, com contos carnais ou que vão direto ao ponto, fechando-as está “O espírito da coisa” — afinal, não há erotismo sem espírito, fantasia. Há também seções sobre espelhos, iniciação — a primeira vez nas mais variadas dinâmicas —, e madrugada e outras penumbras — no último século, é recorrente o retrato da pessoa que sai pela noite, sozinha, possivelmente retratando uma solidão contemporânea.
Lygia Fagundes Telles [Rafael Campos Rocha]
“Das visitas ao paraíso" reúne contos que celebram a erótica, daqueles que atingiram o paraíso. A maioria dos textos desta seção são de escritoras. “As mulheres parecem que estão olhando mais para o paraíso agora”, diz a organizadora. Ao lado de Ana Paula Mayer, Beatriz Bracher e Márcia Denser, está Lygia Fagundes Telles com seu conto “Tigresa”, no qual a autora trabalha o corpo da mulher como se fosse um tigre. Também fazem parte desse bloco os contos “Eros e civilização”, de Modesto Carone, e “Viagem”,
Outros contos da antologia comentados no episódio são “Viagem aos seios de Duília”, de Aníbal Machado; “Hoje de madrugada”, de Raduan Nassar, “Latin lovers”, de João Silvério Trevisan, “Sargento Garcia", de Caio Fernando Abreu, e o conto de Pedro Maia Soares, clássico dos anos 70, que traz um homem tarado por uma melancia.
Aquela coisa
A importância do léxico e o jogo de palavras na literatura erótica também são discutidos no episódio. Recorrentes, palavras como “coisa” indicam como é difícil nomear “aquilo” e como escorregamos para falar e escrever sobre sexo. A carga moral do assunto também torna essa forma de arte mais complexa.
Moraes e Werneck também debatem se há diferença entre pornografia e erotismo — e como Freud só gostava da palavra pornografia e dizia que ao chamar de “erotismo” já estávamos calcificando a questão. E como amor e erotismo são temas abertos para leituras elaboradas ou toscas, manifestações grosseiras ou incríveis.
Na conversa, comentam sobre como hoje está mais fácil para as mulheres falarem disso do que para os homens — mulheres estão mais livres, homens estão mais vigiados. Corre-se o risco do erro e do cancelamento, uma questão complicada, ainda mais no campo artístico. “Lolita é uma obra-prima e não deve ser cancelada. E claro que isso não é um aval a pedofilia”, diz Eliane Robert Moraes.
“Na literatura, pode-se pensar coisas no limite, que na realidade não se pode fazer. Na literatura, podemos nos perguntar por esses lugares da escuridão. Se perguntar, e não moralizar”, comenta a organizadora, lembrando da frase de Clarice Lispector: “‘Porque na escuridão, o que existe é a escuridão’ — a literatura é o lugar onde podemos falar sobre isso.”
Na visão de Moraes, todo livro que fala de sexo tem erotismo, ainda que um erotismo vil. Obras que trazem o lado escuro do erotismo também são mencionadas no episódio, como Lolita, de Vladimir Nabokov; Vista chinesa, de Tatiana Salem Levy, que narra um caso de estupro; e o conto “O voo da madrugada”, de Sérgio Sant’Anna, que também aborda o tema.
Leitura obrigatória
Para finalizar, Eliane Robert Moraes compartilha alguns autores contemporâneos imperdíveis na antologia — com receio de citar uns e não outros — entre os quais estão Amara Moira, que escreve sobre uma iniciação de transsexuais, Andrea Del Fuego, José Falero e Reinaldo Morais, que presenteou a antologia com o conto inédito “Contra mão”.
Moraes também convida os ouvintes ao lançamento da antologia na livraria Megafauna, que acontece no dia 12 de dezembro, para compartilharem outras leituras imperdíveis no evento.
Mais na Quatro Cinco Um
Eliane Robert Moraes já havia participado de um episódio anterior do 451 MHz – aliás, um dos mais ouvidos do podcast! –, Ferrante e Starnone: as mentiras e os segredos dos escritores, em que junto ao tradutor Mauricio Santana Dias, conversou sobre as obras de Elena Ferrante e Domenico Starnone.
A crítica literária é uma entusiasta da obra da escritora italiana, tanto que escreveu uma resenha sobre os livros Um amor incômodo e A história da menina perdida para a primeira edição da Quatro Cinco Um.
Ela também escreveu sobre Uma história da tatuagem: do século 19 à década de 70, da historiadora Silvana Jeha na edição de dezembro 2019.
O melhor da literatura LGBTI+
Cristina Judar, autora de Elas marchavam sob o sol, que saiu pela editora Dublinense, indicou O parque das irmãs magníficas, de Camila Sosa Villada, publicado pela Tusquets, selo da editora Planeta, com tradução de Joca Reiners Terron.
Vale lembrar que o próximo lançamento da Camila Sosa Villada será Sou uma tola por te querer, enviado em dezembro na caixa dos assinantes do Clube 451, plano da revista que envia mensalmente um livro junto da edição impressa da revista Quatro Cinco Um. Assine o plano aqui.
O livro segue relatos da vida de travestis e transexuais que fazem programas em um parque de Córdoba, na Argentina, misturando elementos de realismo mágico à dura e violenta realidade vivida pelas personagens.
Confira a lista completa de indicações dadas no podcast 451 MHz, no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+.
Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.
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