Trechos,
Trecho de ‘A (des)educação do negro’, de Carter Godwin Woodson
Escrito em 1933 pelo historiador afro-americano Carter Godwin Woodson (1875-1950), nova edição com prefácio de Emicida chega às livrarias brasileiras
29mar2021 | Edição #43A des-educação do negro. Carter Godwin Woodson.
Trad. Naia Veneranda Gomes da Silveira • Edipro • 128 pp • R$ 31,90
Escrito em 1933 pelo historiador afro-americano Carter Godwin Woodson (1875-1950), o primeiro filho de escravizados a obter o título de doutor em sua área e o segundo estudante negro a se doutorar em Harvard, o livro mostra como a educação tradicional (branca e racista) adotada nos Estados Unidos não levava em consideração a história dos negros em sua amplitude e tinha um impacto nefasto sobre a população afro-americana. Woodson formulou então um programa pedagógico que propunha uma ruptura com o sistema branco em todas as searas da sociedade (saúde, economia, direito, religião etc.), para com isso destruir os alicerces sociais do racismo.
A nova edição brasileira lançada pela editora Edipro, que chega às livrarias na próxima semana, traz um prefácio do Emicida.
Prefácio
Minha mãe tinha folga no sábado de manhã. Nesse dia, ela se levantava cedinho e colocava seus discos favoritos no último volume. Assim, conheci a obra de artistas como Nana Caymmi, Martinho da Vila, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Zeca Pagodinho, Luiz Melodia e Ney Matogrosso, entre tantos outros. Esse último, pra mim, é um dos maiores intérpretes de todos os tempos. Eu adoro a obra de todos, os considero o que o grande Hampâté Bâ chamaria de bibliotecas vivas.
No entanto, me deixe falar um pouco sobre um fragmento da obra do Ney, mais especificamente de uma frase dentro de uma letra. Uma frase que me fisgava na infância, e eu ficava horas e horas refletindo sobre ela. Ney, enquanto cantava A cara do Brasil, composição absurdamente incrível de Celso Viáfora e Vicente Barreto, compartilhava com a audiência uma indagação cortante: o Brasil é o professor Darcy Ribeiro, que fugiu do hospital pra se tratar?
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Eu passava o resto dos dias preso nesse trecho. Quem era esse tal Darcy Ribeiro? À época, eu ainda desconhecia a contribuição do professor ao país. E como assim ele fugiu do hospital para se tratar? Há algum lugar melhor para buscar a cura de uma enfermidade que nos atormenta do que um hospital? Qual era o sentido daquela fuga? Meu cérebro sentia que estava tentando encaixar uma peça redonda em um orifício quadrado; algo estava fora do lugar.
Este é o inquestionável superpoder do poeta: fazer a água mole do abstrato gotejar até que perfure a pedra dura do concreto. É assim que se abre espaço para que o novo venha a nascer.
Ao refletir sobre a obra de Carter Godwin Woodson para contribuir com este prefácio, o que considero uma honra sem tamanho da qual humildemente espero estar à altura, e em especial com o texto que você agora tem em mãos, A (des)educação do negro, curiosamente a canção me visita o imaginário e, mais de duas décadas depois, o prisma pelo qual a observo é completamente diferente.
Se aos catorze anos eu me perguntava se o professor não havia tido uma “ideia de jerico” ao fugir do hospital para se tratar, a questão agora se apresenta para mim da seguinte forma: pode uma instituição estar completamente desalinhada de sua serventia social, de maneira a fazer com que seus usuários busquem fora dela a solução dos problemas que ela, em tese, se propõe a solucionar?
A resposta, infelizmente, é sim.
Embora a análise do senhor Woodson seja bastante centrada na experiência estadunidense, em especial nas cinco décadas que antecedem seu lançamento, em 1933, ela não se restringe apenas a essa janela de tempo e espaço. Seus apontamentos podem (e devem) ser apreciados perante o desafio de elaborar um programa educacional que seja mais do que a simples transmissão de informações, estando, assim, comprometido com o que certa vez eu vi a professora Nilma Lino Gomes, a primeira mulher negra a se tornar reitora de uma universidade pública federal no Brasil, chamar de campo emancipatório.
Alinhar instituições, sobretudo as de ensino, com seu propósito é abrir espaço para que floresça a emancipação verdadeira de todos os povos que foram subalternizados durante a barbárie representada pela experiência colonial no continente americano. Esse fenômeno produziu sociedades vergonhosamente desiguais, em que o eurocentrismo funciona como combustível de um rolo compressor narcisista, responsável por destruir tudo que não for um espelho.
A sociedade brasileira, autoritária em sua essência, ao longo de sua história, comprometeu-se mais com a manutenção do abismo do que com pontes que possam aproximar os dois lados desse abismo, definindo como tônica para sua pós-abolição o rancor. Sendo assim, se essas pessoas trazidas à força do continente africano não podem servi-la em um regime de escravidão, então, não terão o direito de ser nada nessa mesma sociedade. Impedir o acesso a terras, ao ensino, elaborar políticas de embranquecimento, ter em seus governos entusiastas da eugenia foram, continuamente, apenas alguns dos elementos presentes nesse caldo que tem como consequência um país líder em rankings constrangedores.
Para muitos, as consequências práticas dessas ações são de difícil percepção. Enquanto escrevo, me vem à mente a lembrança da infância, de um trabalho que realizamos na primeira série do ensino fundamental na escola em que eu estudava.
A tarefa era bastante simples: cada aluno deveria trazer informações sobre a origem de sua família. Enquanto outros alunos iam lembrando e respondendo, fui ficando nervoso, até que chegou a minha vez. Lembrei das duas avós com quem tive contato, uma negra retinta e outra que era o que o país se referia como uma mulata. Eu as descrevi e, titubeante, disse que talvez minhas avós tivessem vindo da África. A professora me repreendeu e me perguntou quem era a pessoa branca da minha família. Com muito esforço, me lembrei que, alguns anos atrás, havíamos sido visitados pela mãe de minha avó mulata, por minha bisavó, uma mulher da região Sul do país, que no Brasil é entendida como branca. Quando a mencionei, disse também que talvez ela fosse portuguesa, não por ter qualquer evidência sobre isso, mas porque me veio o nome de Portugal na cabeça. A professora sorriu carinhosamente e disse: “Tá vendo como você também tem uma origem bonita como todos os outros?”.
Ela se satisfez, e eu fiquei contrariado. Por que minhas avós não foram consideradas família? E por que a África não era uma origem aceitável?
Eu nunca consegui sentir ao menos raiva daquela situação, senti apenas tristeza. Aquela pobre mulher nem sabia o que tinha feito. Ela só entendia que relacionar alguém à África era ofensivo, e me defendeu de mim mesmo me dando uma origem louvável. Quantas desgraças sobrepostas.
Fato é que, após a passagem desse rolo compressor desumanizante, qual parte dessa sociedade se vê obrigada a respeitar ou colaborar com um povo que sequer tem o direito de mencionar a própria origem, sua fé? Qual é o tamanho do terrorismo feito, para que até mesmo crianças, desde muito cedo, se desesperem no momento em que precisam falar sobre essas questões publicamente?
O estrago está feito.
Ainda bem que a música pode atravessar tudo, levar nossos olhos para além do que eles alcançam, sempre. Um dos discos favoritos da maioria dos fãs de rap é o The miseducation of Lauryn Hill, da Lauryn Hill. Só consegui compreender a amplitude de seu conceito depois de cruzar o disco com sua referência maior, que é este livro que você tem agora nas mãos. Os interlúdios feitos pelo poeta e ator Ras Baraka, sempre falando sobre amor para crianças, num disco que é sobre amor, memória, sofrimento e Deus, são como um mapa do tesouro para todos aqueles que em algum momento sentiram que algo lhes tentou roubar a alma. Lauryn Hill ergueu um manifesto sobre amor real, todas as formas dele, mas principalmente o exercício do amor como um trabalho de base intenso e profundo, capaz de resgatar toda uma comunidade. Afinal, é dessa mesma comunidade que vai se erguer a solução para seus mais agudos problemas. Este livro trata disso.
Quando Lauryn Hill fez esse projeto, ela deu de presente ao mundo uma janela de esperança, e tudo começou com a provocação feita pelo professor Carter G. Woodson, quase um século atrás.
Hoje, infelizmente, ainda se faz necessário nos levantarmos contra a opressão racial (e contra muitas outras), e o que temos nesses escritos antigos é como uma bússola, que, mesmo tendo sido redigidos em uma parte distante desse continente, em um tempo igualmente distante, ainda continua bastante atual e pode oferecer soluções valiosas para que o amanhã não seja só um ontem, com um novo nome.
Emicida
março de 2021
Matéria publicada na edição impressa #43 em março de 2021.
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