Música,

Duas novas biografias celebram Raul Seixas, morto há 30 anos

Leia trechos inéditos dos lançamentos sobre o astro baiano; fãs organizam marcha de ‘malucos beleza’ nesta quinta

21ago2019

Em 1988, um ano antes de sua morte — que completa trinta anos neste 21 de agosto —, Raul Seixas levou um golpe particularmente duro. Ao visitar o consultório do dentista, descobriu que seus dentes precisavam ser arrancados, não havia outra solução. Assim, no início do ano seguinte, foram todos extraídos no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, e substituídos por próteses. O desânimo durou pouco: Raulzito logo ficou embevecido por seu novo sorriso.

Esta é uma das muitas histórias contadas por Jotabê Medeiros na biografia Raul Seixas: não diga que a canção está perdida, que a Todavia lança em novembro. “Creio que há um sem-número de novidades no livro, sem querer parecer presunçoso. Colhi depoimentos de mais de sessenta pessoas, li cerca de quarenta livros e fascículos, ouvi uns cinquenta discos”, conta à Quatro Cinco Um Medeiros, jornalista e autor de Belchior: apenas um rapaz latino-americano (Todavia, 2017), biografia que já vendeu 19 mil exemplares, no embalo do culto recente ao astro cearense da MPB morto em 2017. 

Além do trauma odontológico de Raul, Medeiros narra histórias saborosas, como o encontro de um Raul ainda obscuro com Mick Jagger em Salvador em 1968 — ano em que gravou seu primeiro disco, quando integrava o grupo Raulzito e os Panteras — e o show em cima de um trio elétrico no começo dos anos 1960. “Apesar de ter vivido pouco, 44 anos apenas, Raul teve uma vida de espantosa intensidade”, diz. A notoriedade viria com Krig-ha, Bandolo!, disco de 1973 com músicas como “Ouro de Tolo”, “Mosca na Sopa” e “Metamorfose Ambulante”.

Um dos focos do livro é a relação de Raul com a música brega — ele produziu e compôs canções para artistas como Diana, Odair José e José Roberto, cujos sucessos, conta Medeiros, ajudaram a moldar a face da música dita “cafona” no começo dos anos 1970. “Essa faceta explica muito do que ouvimos hoje — a música periférica carrega ainda muito do que Raul inventou.”

Sem querer revelar maiores detalhes sobre a obra, o escritor promete descobertas que devem sacudir certas convicções sobre Raul Seixas, como, por exemplo, sua relação com seitas satânicas, ao lado do escritor e parceiro Paulo Coelho. “O que posso dizer é que Raul tinha um lado de extrema generosidade, mas também um lado de espantosa pusilanimidade.”

Bangue-bangue amazônico

Outra biografia do músico baiano deve chegar às livrarias ainda neste mês de agosto. Trata-se de Raul Seixas: por trás das canções (BestSeller), na qual o jornalista Carlos Minuano — que perfilou o estilista e apresentador Clodovil Hernandes em Tons de Clô (BestSeller, 2017) — traça a trajetória de Raul por meio de suas composições. “Seu cancioneiro é muito rico em referências de vários tipos, de Aleister Crowley a Carlos Castaneda, passando por Proudhon. A coisa vai muito além da mistura baião-rock. Em sua música, há questionamentos filosóficos, crítica social, humor, ironia, e ele fez um caldo muito original com tudo isso”, diz ele à Quatro Cinco Um.

Minuano revela um Raul de múltiplas camadas, que se reinventou constantemente, “experimentando diversas possibilidades de si mesmo”. Entre as novidades apresentadas no livro estão o relato da inusitada turnê Ouro de Tolo por dois garimpos do Pará, em 1985, que vem acompanhado de mais de uma dezena de fotos inéditas da viagem, feitas por Cristina Villares, fotógrafa que à época trabalhava para a extinta revista Status. “É a história mais surreal que encontrei. Na década de 1980, o cantor resolveu trabalhar com vários empresários, que ficavam vendendo shows para ele, entre eles o Gato Félix, ex-Novos Baianos, que esteve nessa turnê. Descobri uma aventura muito louca, que parece ter saído do filme Medo e Delírio em Las Vegas, de Terry Gilliam”, conta o jornalista.

O faroeste amazônico tem conflito armado, suborno, disenteria, maldição, piloto embriagado fazendo manobras arriscadas num velho teco-teco e o próprio Raul como piloto improvisado. “Que outro artista se lançaria numa turnê como essa?”, questiona Minuano. “Conforme o ângulo pelo qual você vê, pode achar que deu tudo errado, que os shows foram ruins, que ninguém ganhou nada, que acharam que iriam morrer várias vezes. Mas eu prefiro dizer que tinha que ser assim mesmo.”


Raul em Itaituba (PA) durante turnê por garimpos amazônicos [Cristina Villares]

Toca Raul!

Considerado o pai do rock brasileiro, Raul Seixas lançou 17 discos em 26 anos de carreira e se imortalizou em canções como “Metamorfose ambulante”, “Tente outra vez”, “Maluco beleza”, “Gîtâ”, “Ouro de tolo”, “Eu nasci há dez mil anos atrás”, “Sociedade Alternativa” e por aí vai. Sobrevive também nos incontáveis gritos de “Toca Raul” que saem da boca de fãs, simpatizantes e toda sorte de fanfarrões. 

“É um meme moderno”, diz Medeiros. “Tornou-se uma brincadeira recorrente em todas as plateias. Já vi gritarem isso até em show de estrangeiros, como Roger Waters, do Pink Floyd. Foi tão recorrente que acabou sendo ouvido: Bruce Springsteen cantou ‘Sociedade Alternativa’ em seu show no Brasil.”

Para celebrar a vida do músico, os raulmaníacos se reúnem anualmente em frente ao Theatro Municipal de São Paulo para a Passeata Raulseixista, originada em 1990, ano seguinte à morte do cantor. “Neste ano, por conta do trigésimo ano da morte de Raul, será a maior de todas, com certeza”, conta Sylvio Passos, que fundou o fã-clube Raul Rock Club em 1981 e se tornou um amigo próximo de Raul. Ele organizou o livro Raul Seixas por ele mesmo (Martin Claret,1990) e, hoje, é guardião de parte do acervo pessoal do ídolo.  

Mas Passos deixa claro que não é o responsável pela marcha — “é algo que acontece espontaneamente” — e relembra a edição de 2009. “Ao chegar à concentração, fui cercado por policiais pedindo meus documentos, pois julgavam que eu era o responsável por aquela movimentação toda. Falei para o policial que eu não era responsável por nada daquilo, que o verdadeiro responsável era Raul Seixas. Todos que ali estavam caíram numa gargalhada sem fim”, brinca. 

A folia tem até respaldo legal: em 2007, foi aprovada a Lei nº 14.373, de autoria do vereador Carlos Gianazzi (PSOL), instituindo o “Dia para sempre Raulzito”. Neste ano, a concentração ocorre no Theatro Municipal a partir das 12h, com saída em direção à Praça da Sé às 18h. O evento paulistano — que já se alastrou para diversas cidades brasileiras — costuma juntar público na casa dos milhares. Segundo Passos, esta edição deve reunir mais de 10 mil participantes.

Legado

Passadas três décadas da manhã em que sofreu uma parada cardíaca, o Maluco Beleza continua a provocar deslumbramentos em sucessivas gerações. “Ele produziu uma obra muito rica, desde a estrutura musical até as questões relativas a questionamentos filosóficos, políticos e morais”, diz Jotabê Medeiros, que confessa ter encontrado um Raul “muito diferente” daquele que conhecia. “É emocionante a fidelidade que ele devotou a uma base musical firmada lá nos primórdios, pelos seus primeiros ídolos (Elvis, Little Richard, Luiz Gonzaga), mas é também fascinante a capacidade de assimilação e debate que ele propôs ao longo da carreira”, diz.

Para Minuano, Raul faz parte de um seleto time de artistas com singularidade, originalidade, carisma e talento bem acima da média: “Foi um visionário, à frente de seu tempo, que subverteu a música ao misturar rock com baião numa época em que ninguém tinha ainda pensado nisso. Considero Raul uma espécie de Jack Kerouac da música brasileira, que viveu sua vida e sua obra com um nível de intensidade e entrega que só os loucos e os gênios possuem”.

Estivesse vivo no Brasil de hoje (em tempos de idolatria a “mitos” bem diferentes daquele cultuado em torno de sua figura, diga-se), sobre o que cantaria Raul Seixas? “Creio que é fácil saber”, responde Medeiros. “Ele defendeu ideais libertários, utópicos. Esteve sempre mais perto do povo do que do star system. Nunca foi um acumulador de bens, torrou tudo o que ganhou. Acredito que estaria preocupado com os mais humildes, com o destino do povo, pelo qual nutriu um amor incondicional”, diz, citando a canção “O Homem”, em que Raul canta: 
Eu vou subir
pelo elevador dos fundos
que carrega o mundo sem sequer sentir. 

“Creio que mostra de que lado ele sempre esteve”, conclui. 

Minuano é mais categórico: “Estaria incomodado, certamente. Aliás, ele faz muita falta, sobretudo neste tempinho de merda que estamos vivendo no Brasil. Estamos precisando de artistas mais instigadores e de uma arte mais subversiva”. 

Leia abaixo trechos inéditos das duas biografias.

Trecho inédito de Raul Seixas: não diga que a canção está perdida (Todavia), de Jotabê Medeiros, com lançamento previsto para novembro de 2019 [obs.: texto ainda em edição]:

Teimoso e esperançoso, Raul seguia peregrinando pelo Rio de Janeiro em busca de uma chance para si, para seu sonho de estrelato e para seu conjunto. Conseguiu então que um papa da produção os recebesse: Carlos Imperial, o Midas cafajeste da música jovem, o orgulhoso portador do bordão “somente a vaia consagra o artista”. Imperial vivia na rua Barata Ribeira, em Copacabana. Imaginem a empáfia do sujeito: em 1967, ele tinha acabado de produzir os sucessos A Praça, de Ronnie Von; Mamãe Passou Açúcar em Mim, dos Incríveis; e Vem Quente que Eu Estou Fervendo, de Erasmo Carlos. Estava nojento de metido.

Quando chegaram ao apartamento de Imperial, o capixaba desceu as escadas de roupão, com sua barriga indecente e seu costumeiro jeitão de pouco caso e Raul, ansioso, se antecipou: “Nós somos da Bahia”. Imperial respondeu, blasé: “Sim, vocês querem o quê”. Raul: “Queria lhe mostrar umas coisas aí para ver o que o senhor acha”. Imperial, já demonstrando enfado: “Mostra aí!”.

Os Panteras tocaram uma, duas, três canções. Na terceira, Imperial perguntou: “Já entendi. Pode parar. Vocês são da Bahia, não?”. Raul respondeu: “Sim, somos da Bahia”. Imperial, já se levantando para sair, olhou para Raul e sentenciou: “Pois peguem o primeiro ônibus e voltem para a Bahia, porque iguais a vocês tem mais de 14 mil conjuntos aqui no Rio de Janeiro.”. Raul ficou lívido, arrasado. Quase chorou. A traulitada tinha sido forte o suficiente para fazê-lo considerar a desistência, entregar os pontos, mas a banda resistiu. Raul murmurava, cabeça baixa, vencido: “Esse cara entende disso…”, ao que Carleba retrucava: “É um imbecil, é um bosta! Entende porra nenhuma!”.
 
Essa história merece uma fenda espaço-temporal na narrativa: em 1973, quando Ouro de Tolo estava estourada em todo o País, tinha ultrapassado as 100 mil cópias (virou até uma espécie de meme após ter tocado no Jornal Nacional), Raul Seixas reencontrou Carlos Imperial nos bastidores de um programa de TV. Imperial sabia que Raul era uma estrela ascendente, estava tocando em todas as rádios do País, mas não se recordava de ter feito uma audição com ele. O capixaba cumprimentou o baiano efusivamente e o parabenizou pela canção, ao que Raul lhe respondeu: “Felizmente, eu não segui seu conselho”. Imperial ficou boiando e Raul o lembrou do episódio. O produtor, geralmente um espírito calhorda e debochado, enrubesceu, não sabia como se desculpar, ficou vendido, perdido. A vingança é uma canção que ultrapassa as 100 mil cópias vendidas.

Trecho inédito de Raul Seixas: por trás das canções (BestSeller), de Carlos Minuano, com lançamento previsto para agosto de 2019:

O envolvimento do ocultismo na obra de Raul durante a fase de parceria com Paulo começou a ficar mais evidente e público no show de estreia da turnê do disco, no dia 26 de setembro de 1973, no Teatro das Nações, em São Paulo. No show, o público recebeu de Paulo Coelho exemplares de um gibi-manifesto que trazia uma dica aos leitores na contracapa: “A chave para a compreensão do long-play está em ouvir o disco lendo A fundação de Krig-ha”.

Foi também durante a turnê de divulgação do álbum que nasceu uma das composições do disco seguinte, e um dos maiores sucessos da dupla. Depois de um baseado no hotel, os amigos perceberam que estavam sem colírio e, para disfarçar os olhos vermelhos, ambos sacaram dos bolsos seus óculos escuros. Viajando de rir na onda da maconha, começaram a cantarolar: “Quem não tem colírio usa óculos escuros”. Raul percebeu que estava chegando mais uma música, pegou seu violão e em pouco tempo estava pronta a primeira versão de “Como vovó já dizia”, canção que seria a primeira a ser vetada.

A música, ainda com o nome “Oculoescuro”, logo de cara desagradou aos censores. No primeiro parecer, emitido no dia 12 de novembro de 1973, a composição de Raul e Paulo foi enquadrada no gênero protesto social, contendo mensagens subversivas com o propósito de achincalhar a atual conjuntura sociopolítica nacional. Começava, no departamento jurídico da Philips, uma via-crúcis para a liberação da canção. Uma novela agoniante que durou cerca de dez meses, de novembro de 1973 a julho de 1974.

[…] A música foi lançada na trilha sonora da novela O rebu, da TV Globo, em 1974 e depois no EP Medo da chuva, que saiu em abril de 1975. Outras dezenas de músicas de Raul foram censuradas, muitas delas nunca liberadas e que até hoje permanecem sem gravação.
 

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).