Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A Constituição contra a ameaça autoritária

Em entrevista, professora de direito húngara compara a derrocada da democracia húngara com o caso brasileiro

29maio2020

Em novembro de 2019, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) sediou o 4º Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política, que contou com a participação de professores e pesquisadores nacionais e estrangeiros. Nessa ocasião, os professores Rafael Mafei Rabelo Queiroz (da USP), Thomas Bustamante (da Universidade Federal de Minas Gerais), e Margaret Martin (Western University, Canadá) entrevistaram para a Quatro Cinco Um Renáta Uitz, professora da Universidade Central Europeia (CEU) na Hungria.

Uitz é professora na CEU desde 2001 e diretora-presidente do programa de Direito Constitucional Comparado na mesma instituição desde 2007. A CEU, fundada em 1989 pelo investidor George Soros junto com um grupo de intelectuais europeus, tinha o objetivo de se tornar referência internacional e ajudar a Hungria e outros países pós-comunistas a se transformarem em sociedades abertas e democráticas. Tornou-se rapidamente a mais importante universidade do leste europeu e há vários anos um alvo de ataques do governo do premiê Viktor Orbán. A instituição foi forçada, em 2019, após longa batalha jurídica com o governo húngaro, a transferir seu principal campus para a cidade de Viena, na Áustria.

 

Confira abaixo a entrevista feita sobre o estado de coisas na Hungria, a arquitetura de regimes antidemocráticos e comparações com o cenário atual brasileiro.

Quatro Cinco Um: Você mencionou o processo de recessão democrática na Europa, em especial na Hungria e na Polônia. Você poderia nos contar o que é uma recessão democrática e como saber se estamos passando por uma?
Recessão democrática soa como um termo que denota um desastre natural. Argumentei que recessão democrática é um processo feito por humanos. Ele demanda políticos que não levam ideais constitucionais a sério, que não veem constituições como fonte de constrangimento aos seus poderes e, ao invés disso, usam a Constituição e regras legais para se autoperpetuarem no poder, legitimarem regras arbitrárias e serem reeleitos quantas vezes for possível.

É realmente difícil de perceber uma recessão democrática, porque, depois do choque inicial, quando se fala na reinvenção da Constituição para criar uma nova nação húngara ou uma nova nação polonesa, pouca coisa parece acontecer. E, em meio a reformas no Judiciário, na mídia e na educação superior, haverá protestos nas ruas e, dentro de alguns anos, esse cenário se tornará cotidiano.

Como esse processo de reformas funciona especificamente com a mídia?
Quando o partido que nos deu como primeiro-ministro Viktor Orbán assumiu o poder na Hungria, nós não esperávamos mudanças constitucionais. O partido nunca fez campanha sobre uma reforma constitucional. Uma vez que eles decidiram que dariam uma segunda chance para a Hungria se tornar uma democracia constitucional, a mídia local se tornou muito cética sobre esse processo. Então, o primeiro-ministro começou a reclamar da cobertura midiática feita pela esquerda, que estaria conspirando contra a reinvenção a nação húngara.

Na Hungria, a reforma midiática se deu por meio de reformas de propriedade e mudança de controle das companhias, que se transformaram em negócios favoráveis ao governo. Não estamos falando apenas da mídia impressa e eletrônica, mas de um segmento inesperado, o da publicidade e de outdoors públicos. O controle sobre o conteúdo de outdoors públicos permite que o regime aparelhe a esfera pública com propaganda de governo.

 

Na organização atual, as oportunidades são extremamente limitadas para o discurso político genuíno. Em um intervalo de dez anos, até mesmo os jornais regionais passaram a ser de propriedade de conglomerados midiáticos favoráveis ao governo. O mesmo acontece com jornais que são distribuídos no metrô. O conteúdo crítico encontra-se na mídia online, e é nela que o jornalismo investigativo de dados publica o que se consegue ter acesso por meio da legislação de acesso à informação.

 

O espaço midiático está saturado, pois há pouco espaço para expressar vozes de oposição. O resultado disso é que, sempre que o governo participa de eleições, apresenta vantagens significativas pelo fato de controlar o acesso da mídia impressa e online. Além disso, as redes sociais são usadas de diversas formas. A única diferença que há entre a Hungria e a Polônia é que, na Polônia, ainda existe alguma mídia independente, que permite que a oposição se expresse, dando acesso ao discurso público de verdade. A similaridade entre a Polônia e o Brasil é que vazamentos de conversas que não deveriam ter sido gravadas se tornaram parte integrante da luta contra opositores políticos – e, claro, o conteúdo aliado ao governo triunfa no final.

E qual era a relação desses novos governos com o Judiciário?
A receita húngara para construir uma democracia iliberal – esse é o rótulo usado por Viktor Orbán, então não é um termo científico – começou com o aparelhamento da Corte Constitucional. Na verdade, o aparelhamento foi feito em vários passos. Primeiro, as regras de nomeação dos ministros foram mudadas. Depois, as regras das eleições. Em seguida, as regras sobre o tamanho da Corte e a aposentadoria, além de ajustes à sua jurisdição.

Se você olhar para a Corte Constitucional húngara no papel, você ficará surpreso, porque ela parece ter uma jurisdição bem extensa. Mas o diabo está sempre nos detalhes: você precisa saber quem consegue de fato se aproximar da Corte Constitucional, em que tipos de matérias, e o que a Corte Constitucional pode apreciar em cada caso. Por exemplo, nas emendas constitucionais, a Corte pode apenas revisar a adequação do processo de emenda, mas não o conteúdo delas.

Uma das maiores mudanças nas fases iniciais desse aparelhamento na Hungria foi a extinção da chamada actio popularis, que permitia a qualquer pessoa que ajuizasse uma ação perante a Corte. Isso significou limitar o acesso individual à Corte de maneira radical. O resultado é que ficou extremamente difícil para pessoas físicas acessarem a Corte com denúncias de violações de direitos fundamentais.

Quando o regime polonês chegou ao poder após as eleições de 2015, aparelhar a Corte Constitucional foi uma das primeiras medidas tomadas pelo novo governo. Antes até mesmo da reforma judicial [de 2017, que implementou mudanças que diminuem a independência do Poder Judiciário], que teria sido julgada inconstitucional, de acordo com vários juristas do país, se a Corte Constitucional não tivesse sido aparelhada.

O que você diria do papel das primeiras instâncias do Judiciário e do Ministério Público, isto é, os juízes e promotores em postos ordinários, fora das cúpulas das instituições, para a atual situação política da Hungria e da Polônia?
É parte da receita iliberal não precisar fazer mudanças em âmbito constitucional quando o aparelhamento da Corte Constitucional foi realizado. O governo húngaro iliberal teve maioria para aprovar uma nova Constituição, chamada de Lei Fundamental, que foi emendada diversas vezes. No caso polonês, o governo não tem maioria para elaborar uma Constituição, então foi preciso fazer mudanças nas leis. Ambos os governos conseguiram fazer uma reforma judicial maciça apenas aprovando uma série de leis. Uma lição importante é que a reforma judicial de cima para baixo, incluindo a autoadministração judicial, pode ser feita em nível legal, desde que esses governos tenham certeza de que essas leis não serão consideradas inconstitucionais.

Uma característica essencial dessas reformas é a [interferência na] autonomia judicial. Esse aspecto do Judiciário é impactado por regras para nomeações, promoções e sanções disciplinares contra juízes. Na Polônia, disciplinar os juízes é um procedimento interno, usado de modo excessivo para silenciar juízes que tomariam decisões contra o governo. As reformas judiciais são frequentemente acompanhadas por outras reformas do processo penal. O governo húngaro era a favor do restabelecimento da prisão perpétua, algo também discutido no Brasil.

Na Hungria, há um movimento que pede uma reforma da justiça juvenil, na tentativa de julgar menores infratores de acordo com regras similares às dos adultos. A reforma judicial frequentemente anda de mãos dadas com a reforma de processo penal, porque uma atitude mais “dura” contra o crime é muito importante para reinventar a nação de acordo com um governo iliberal.

Tanto a Polônia como a Hungria são antigos países comunistas, onde historicamente a investigação e a acusação criminais serviam ao poder Executivo. Na Hungria, houve um momento, após a transição, em que o Ministério Público se tornou independente, e a própria instituição passou a estimular autocontenção de seus membros. A piada era que só havia uma organização mais hierarquizada e disciplinada que a militar: o Ministério Público.

Há diversos padrões internacionais sobre como uma Corte independente deve se portar. O Ministério Público, por outro lado, varia bastante ao redor do mundo. Como não existem padrões internacionais para o funcionamento do Ministério Público, [governos iliberais] modificam essa organização de acordo com suas próprias necessidades. Isso geralmente significa um sistema muito leal às necessidades do Executivo, influenciando nos tipos de casos em que uma acusação criminal é oferecida pelo Ministério Público. Por exemplo, quando se percebe que crimes relacionados ao uso do dinheiro público não são sistematicamente perseguidos, então existe aí um abuso de poder. O mesmo acontece quando denúncias são abertas contra membros da administração pública anterior ou de partidos políticos que não estão mais no governo.

Você não é só uma professora de direito constitucional, mas também está envolvida em posições administrativas na faculdade de direito da sua universidade CEU. Como você vê a liberdade acadêmica e a atual relação dos governos com instituições educacionais?
Quando se observa regimes iliberais a uma certa distância, pode parecer aleatório que as universidades e os professores sejam atacados por esses regimes. Isso não é exclusivo da Hungria ou da Polônia. Há demissões em massa e medidas contra professores universitários na Turquia; essa também é uma prática comum na Rússia. Esses regimes populistas são profundamente antielitistas, mas é mais que isso: eles não precisam de pessoas criticando-os na esfera pública, e é muito claro que tanto na Polônia quanto na Hungria muito da crítica contra as medidas desses vem da academia. Então, os ataques a universidades e aos próprios acadêmicos são parte de um projeto maior de supressão e silenciamento do dissenso.

Agora, algumas medidas são pessoais, o que significa perseguir determinados professores por suas opiniões, mas elas também são sistêmicas e institucionais. Muitos desses professores trabalham em universidades públicas, que recebem seus orçamentos do governo. Assim, universidades podem ser perfeitamente disciplinadas por meio de cortes orçamentários e pela nomeação de reitores que controlem os gastos das suas instituições; pela concessão ou não de bolsas de estudo, ou alocação de fundos para que alunos estudem em determinados lugares; e, por último, mas não menos importante, pelas regras de salário dos professores. Essa manipulação orçamentária é suficiente para manter as universidades em alerta, com o intuito de alinhá-las à ideologia e aos valores de um determinado regime.

Temas ligados a minorias também podem ser impactados. Os governos controlam as universidades através do credenciamento. Em 2018, o governo húngaro decidiu que estudos de gênero não eram um campo de investigação acadêmica, mas uma ideologia, e, por isso, parou de financiar programas dessa área e suspendeu o credenciamento do seu ensino. Esta é uma restrição muito clara à liberdade acadêmica, baseada no conteúdo [do que é pesquisado e ensinado].

Esses regimes perseguem as universidades desse modo particular pois a proteção da liberdade acadêmica como um direito humano é extremamente fraca. O discurso de professores individuais no espaço público é protegido como liberdade de expressão, mas quase não há fontes sérias no que diz respeito à proteção da autonomia universitária e à operação das condições de universidades – a exemplo de seu financiamento – como um direito humano. Assim, as democracias iliberais são livres para tomar as medidas que quiserem.

E a educação escolar?
Deixe-me contar-lhe uma história húngara sobre democracia iliberal, escolas públicas e educação primária. Ao contrário das universidades, o conteúdo na educação primária é muito fácil de ser controlado. Você pode insistir que, para o bom desenvolvimento da juventude, é necessário um currículo nacional, que garanta a transmissão de certas mensagens às crianças desde cedo. É quando são transmitidos valores tradicionais para se assegurar que a juventude não seja corrompida por determinadas ideias específicas.

Tanto na Hungria como na Polônia, outro campo de batalha é a educação sexual e os modos alternativos de vida, encarados como algo que corromperia a juventude. Então, é importante para o governo se certificar de que a mensagem “correta” sobre valores tradicionais e o lugar da família na sociedade sejam transmitidas às crianças.

Portanto, o próprio currículo é um campo de batalha. Na Hungria, há um controle sobre o conteúdo dos livros didáticos do ensino fundamental. Em um livro didático, por exemplo, recomenda-se que as crianças perguntem a seus pais por que elas não são batizadas. Além disso, educação primária é um meio perfeito de manter desigualdades e assegurar a baixa mobilidade social. A Hungria não é tão diversa quanto o Brasil. Nós temos um grupo minoritário visível, o povo cigano, que tem sérias desvantagens em alcançar uma qualidade de vida decente. Estudos mostram que isso começa na educação primária, e que crianças ciganas têm uma probabilidade maior de não completar o ensino fundamental.

Governos iliberais sabem que a educação cívica começa nas escolas primárias e eles asseguram que tanto o currículo como o ambiente educacional sirvam aos seus propósitos.

No Brasil há uma tendência de algumas associações religiosas adquirirem controle sobre grandes companhias televisivas. Há um padrão na Hungria dessa associação entre mídia e religião?
Vou responder em dois níveis. Quando se trata do domínio da religião organizada e esses regimes, a história húngara e a história polonesa têm diferenças consideráveis.

Na Polônia, a Igreja católica é uma força social muito dominante, ela tem boas credenciais na transição democrática. No entanto, é uma força social muito conservadora e isso explica em parte por que, por exemplo, a Polônia nunca legalizou o aborto. Assim, é extremamente fácil para o regime se aliar aos traços mais conservadores da Igreja católica. Ela fornece apoio aberto para um governo que é a favor de valores tradicionais, que protege a família, que se opõe abertamente aos direitos LGBT. Feminismo é um palavrão, bem como gênero, e qualquer coisa que se relaciona à igualdade de gênero é oficialmente motivo de piada. Na verdade, o governo acaba atuando como um defensor do cristianismo e, nessa constelação particular, feministas e ativistas LGBT são frequentemente representados como perseguidores de cristãos na Polônia, o que soa muito estranho pois a maioria do país é católica.

A história húngara é um pouco mais complicada. A Hungria é um país de maioria cristã, menos religioso que a Polônia. Dentro da agenda húngara iliberal, tornou-se extremamente central, desde o começo, mudar a regulação das relações entre o Estado e a Igreja. O Parlamento húngaro aprovou uma nova lei sobre o acesso [de igrejas] ao status de entidade legal, que interrompeu ou cancelou os status prévios de mais de trezentas igrejas registradas e deu poder ao Parlamento para decidir quem é uma igreja e quem não é.

Então, imagine que um pastor em uma comunidade religiosa que administra uma escola, ou um abrigo para pessoas sem-teto, ou um programa para refugiados e, por quase dez anos, ele não tem uma identificação fiscal, não faz parte de uma entidade legal. Como você paga seus empregados? Eles são empregados por essa organização, que é uma comunidade de fé? Essa é só uma parte da resposta.

A outra parte da resposta envolve a mobilização do cristianismo, nesses países como parte de uma agenda constitucional iliberal e política. A nova Constituição [Lei Fundamental] da Hungria incluiu diversas referências ao cristianismo; uma frase famosa diz respeito a como a Hungria protegeu a identidade europeia contra a invasão turca alguns séculos antes. Depois de sua reeleição pela terceira vez em 2018, o primeiro-ministro Orbán declarou que o projeto de construir uma democracia iliberal tinha terminado, e que, agora, ele estaria incumbido de construir uma democracia cristã, porque uma democracia cristã por definição é iliberal, e o cristianismo viraria o critério para distinguir amigos de inimigos. Esse certamente não é o entendimento de uma democracia cristã no sentido da política alemã, mas antes envolve a mobilização do cristianismo em um sentido muito político, que também ressoa em muitos conservadores cristãos fervorosos nos Estados Unidos.

Por último, mas não menos importante, o cristianismo e a identidade cristã nesse senso político tornam possível que o primeiro-ministro projetasse a Hungria como vítima – de verdade ou potencial – da perseguição ao cristianismo. Muito da agenda contra refugiados e contra migrantes é, na verdade, buscada agora como defesa do cristianismo contra uma invasão muçulmana, e o fato de o cristianismo e, especialmente, o catolicismo ser universal faz com que a narrativa de vitimização seja particularmente potente: quando houver um ataque a cristãos ao redor do mundo, o Primeiro Ministro poderá apontar que cristãos estão em perigo, e por isso o governo precisa promover medidas adicionais para defender a sua identidade cristã por meios iliberais.

O processo que vai de uma democracia liberal para uma iliberal começa com o anúncio de uma mudança constitucional em nome do governo. Você acha que esse anúncio é necessário ou uma mudança pode acontecer mais repentinamente?
A construção de uma democracia iliberal na Hungria aconteceu parcialmente por meio de uma engenharia constitucional, porque, de maneira inesperada, a coalizão desse partido conseguiu maioria para a elaboração de uma Constituição. E fazer uma nova Constituição é um gesto simbólico extremamente importante. Muitas das reformas poderiam ter sido feitas por mudanças legislativas ou executivas. O aspecto realmente importante é que os governos nesses países estão tentando aprovar medidas que não seriam vistas como inconstitucionais. Estão tentando moldar a implementação dessas ideias de base e dessas políticas às realidades dos controles constitucionais ou de direitos humanos.

Ao aparelhar a Corte Constitucional, não é preciso mais se preocupar com declarações de inconstitucionalidade. A preocupação volta-se apenas para uma oposição vinda de órgão europeus de direitos humanos.  Em um sistema como no Brasil, em que ainda não se conseguiu aparelhar o Supremo Tribunal Federal (STF), aparentemente há menos espaço para essas medidas, porque se pode esperar que o STF irá julgá-las inconstitucionais. Ao mesmo tempo, o que você vê no contexto brasileiro é que, quando o presidente usa medidas provisórias e os tribunais respondem quase imediatamente com uma liminar, isso não coloca um fim ao debate político sobre a medida.

Mesmo quando uma medida é barrada [judicialmente] relativamente cedo, o fato de existir um debate público contínuo sobre como torná-la legal envia um sinal de que essas medidas não são desejadas. Isso sugere um tempo de espera: em breve, talvez em uma semana, um mês ou um ano, algo similar pode ser aprovado por um caminho eficaz.

Qual sua sensação sobre a ideia de que a sociedade civil organizada será capaz de conter ou salvar democracias do declínio? Como você avalia a experiência húngara e polonesa?
A literatura sobre a terceira onda de democratização usualmente celebra a sociedade civil como um ator muito importante, ajudando a desencadear a democratização e solidificar um tipo de cultura constitucional que fala sobre assuntos públicos na linguagem dos direitos humanos e do constitucionalismo. Como resultado, estamos acostumados a pensar que a sociedade civil é uma força formidável, que defende a democracia até quando estamos dormindo.

O que a história húngara e a história polonesa nos contam é que, primeiro, os atores da sociedade civil são extremamente frágeis: para serem bem-sucedidos, eles dependem do sistema legal, de regras de acesso à informação, de regras de acesso à justiça, do direito a um julgamento justo, de um espaço midiático livre, em que vozes não são caladas pelo governo. Eles só podem usar essas ferramentas na medida permitida pelo sistema legal.Há uma ideia de que, mesmo que a oposição parlamentar seja neutralizada, a sociedade civil tomará conta de certos assuntos.

É importante ter em mente que parlamentares, mesmo que estejam na oposição, estão em uma posição muito melhor para, por exemplo, cobrar respostas convincentes de ministros e do governo, para obter acesso a informações que não estão disponíveis a cidadãos ordinários e para interromper certas iniciativas no Parlamento. As regras do processo legislativo lhes dão oportunidades que os atores da sociedade civil não têm.

Se fosse possível voltar no tempo, para dez anos atrás, o que você acha que deveria acontecer de modo diferente para impedir que Hungria e Polônia chegassem ao ponto em que chegaram?
Se eu pudesse voltar no tempo, provavelmente voltaria para um período anterior a dez anos, porque nós estávamos pensando na transição para a democracia como algo que a Constituição pudesse resolver. A Constituição era vista como uma ferramenta de transição; ela não era realmente considerada como uma ferramenta da política do cotidiano. Em sistemas nos quais a Constituição é vista como uma ferramenta de transição nas mãos das elites isoladas, ela, de fato, não está a salvo dessas elites, que reavivam essa linguagem de transição em nome de uma Constituição melhor.

Então, ficamos presos em um paradigma de transição para a democracia, usando a Constituição como um veículo de mudança política e social, em vez de enfatizar que o regime de transição acabara e que, a partir daquele momento, a Constituição funcionaria como uma moldura da política e do governo, como um elemento que restringe os poderes políticos e não como um instrumento que alimenta uma transição constante.Assim, é muito revelador que tanto na Hungria como na Polônia, e também no Brasil, quando os atores políticos iliberais entram em cena, eles falem a linguagem da revolução.

A revolução aqui é usada em um sentido simbólico, mas ela faz referência a um tipo de reforma sistêmica em que tudo é possível, na qual Constituição é usada para chegar a esse fim. Essa transição na mentalidade, que foi muito importante em 1988 e 1989, e o fato de se ver a Constituição como uma ferramenta de transição política foram libertadores à época. Mas essas Constituições não chegaram a ser vistas como bases das regras do jogo, e isso é o que continua nos mordendo pelas costas.

E onde você vê esperança? E no momento presente, tanto na Hungria quanto no Brasil, onde há pontos de resistência, onde o povo deve estar?
Eu acho que é realmente crucial recuperar a linguagem da Constituição como um conjunto de regras que põe limites à ação política, em oposição à ideia de “reinventar a nação” pela centésima vez. Partidos de oposição, a sociedade civil e a academia têm um papel crucial em apontar o mau uso do direito e da linguagem constitucional para os propósitos da autoperpetuação política. Esses regimes atualmente são reeleitos regularmente. Eles parecem se agarrar a uma aparência democrática, que lhes dá maior legitimidade do que podemos supor, tanto no âmbito internacional quanto regional.

É extremamente difícil para líderes estrangeiros desafiarem as escolhas políticas de seus pares, que foram reeleitos com margens democráticas significativas. Porém, enquanto eles disputarem eleições, precisarão de pessoas para disputarem contra. Eu acho que devemos ser muito mais sensíveis e sensatos sobre engenharia eleitoral: eleições são ganhas com estratégia e planejamento político cuidadosos. Os Estados Unidos são um bom exemplo disso. O Brasil, em particular, tem que ser extremamente cuidadoso para assegurar que regras eleitorais não sejam projetadas para favorecer o governo da vez. É muito claro que Orbán, na Hungria, recebe grande apoio do sistema eleitoral atual, e que quanto mais vantagens o sistema eleitoral oferecer ao governo, mais difícil será virar o jogo por meios pacíficos da política ordinária. (Transcrição e tradução por Marina Slhessarenko Barreto)

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Rafael Mafei Rabelo Queiroz

Co-organizou História oral do Supremo: Francisco Rezek (FGV Direito Rio).

Thomas Bustamante

É professor da Universidade Federal de Minas Gerais, autor de Em defesa da legalidade: temas de direito constitucional e filosofia política (Arraes Editores).

Margaret Martin