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São Paulo é a “quarta” Canudos

Fora da Bahia, São Paulo abriga maior parte dos descendentes dos sertanejos da Guerra de Canudos

10jul2019

“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Vencido palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5 [de outubro], ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”, escreveu o autor homenageado deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) Euclides da Cunha, prestes a encerrar Os sertões, que narra o embate entre os sertanejos liderados por Antônio Conselheiro e as tropas governistas no sangrento ato final da Guerra de Canudos (1896-1897), no interior da Bahia.


José Alôncio (segundo à dir.) com descendentes em Canudos [arquivo pessoal]

A República enviou quatro expedições com o objetivo de dizimar Canudos, só obtendo sucesso na última: o Exército queimou as mais de 5 mil casas do arraial e quase não deixou sobreviventes em uma população que beirava 25 mil habitantes, assassinando, inclusive, mulheres, crianças e idosos que haviam se rendido.

Uma segunda Canudos voltou a ser erguida em 1910 por sobreviventes do massacre. Essa localidade foi, então, inundada em 1969, com a instalação do açude de Cocorobó – que, em períodos de estiagem, traz à superfície as ruínas da Canudos antiga. Assim, a população foi realocada a cerca de 20 quilômetros de distância desse ponto, dando início à terceira e atual Canudos.

No entanto, podemos encontrar uma espécie de quarta Canudos, mais dispersa e fragmentada, em São Paulo. Segundo a associação União Pelos Ideais de Canudos (Upic), criada em 1993 por José Alôncio Ferreira dos Santos, João Evangelista Régis e outros canudenses que vivem na cidade, a capital paulista abriga cerca de 1.300 descendentes dos sertanejos conselheiristas, que hoje já têm “filhos e netos paulistanos”. Não é um número a ser desprezado, uma vez que a cidade de Canudos possui 16.752 habitantes, de acordo com dados de 2018 — os canudenses em São Paulo representam pouco mais de 7% da população.


Descendentes da Guerra de Canudos na Fazenda Barriguda, em Canudos [acervo pessoal]

A ideia de formar a Upic surgiu quando Alôncio retornou a Canudos depois de passar quinze anos longe da cidade. Lá, entrou em contato com vários projetos desenvolvidos pela Igreja Católica, sindicatos e movimentos sociais que colocavam o povo humilde como protagonista. "Voltando a São Paulo, resolvi convidar alguns migrantes canudenses a organizar um grupo para falar da nossa história e também organizar encontros e conhecer melhor como viviam os canudenses em São Paulo”, conta.

Entre as atividades do grupo está a organização de um encontro anual de descendentes de Canudos em São Paulo, que, em 2018, chegou à sua 18ª edição. Esse evento já tradicional, regado a muito forró, recebe artistas vindos de Canudos ou das cidades vizinhas de Uauá, Euclides da Cunha (antiga Cumbe) e Monte Santo e, em geral, acontece na Casa de Nassau, conhecida como o “Clube Holandês”, localizada no bairro de Pirituba, zona norte da cidade. Além disso, também promove debates sobre Canudos com intelectuais, professores e estudantes universitários, como uma palestra realizada em janeiro deste ano na Pontifícia Universidade Católica (PUC).

Davi e Golias

Alôncio é bisneto de Serafim Ferreira Santana, que teve seu primeiro filho batizado por Antônio Conselheiro. Ele afirma que sua família já se encontrava na região – tendo fundado a Comunidade da Barriguda – quando da chegada do líder religioso. “Serafim teve um papel de destaque na guerra, lutou ao lado de Pajeú [um dos principais estrategistas de Canudos], segundo relatos era o braço direito dele e provavelmente matou na Fazenda Angico o [coronel Pedro] Tamarindo, que substituiu Moreira César [comandante das tropas governistas, morto por canudenses] no comando da fracassada terceira expedição”.

Mais da metade dos familiares do presidente da Upic morreu na Guerra de Canudos: Serafim foi poupado, pois levou alguns parentes para um local denominado Toca da Onça poucos dias antes do fim do conflito. Seu avô, Apolinário Ferreira dos Santos, participou da construção do açude de Cocorobó e da terceira Canudos. A família migrou para São Paulo no começo dos anos 1960 para trabalhar na indústria metalúrgica.


José Alôncio e João Régis na Festa de Santo Antônio de Canudos, em junho deste ano [acervo pessoal]

Já o vice-presidente da associação, João Evangelista Régis, é neto de Joana Maria Régis, sobrevivente da Guerra, e sobrinho de João de Régis, filho do sobrevivente Reginaldo José de Matos, que, até a sua morte em 2002, era uma espécie de “memória viva” de Canudos, tendo participado de livros e documentários sobre o massacre. A relação da família de Régis com Antônio Conselheiro perdura “pela fé e pela religiosidade, sempre presentes nos momentos de oração”.

Tanto Alôncio quanto Régis leram Os sertões. “Há algumas contradições [no livro] quando ele [Euclides da Cunha] fala que o sertanejo é um homem rude, feio, um Quasímodo. Depois, já no palco da guerra, ele conhece o verdadeiro povo nordestino de fibra e lutador, ele exalta e diz que ‘o sertanejo é, antes de tudo, um forte’”, analisa Alôncio, que antes trabalhava com finanças e hoje se define como “agitador cultural”.

Régis acredita que muitos canudenses já leram a obra de Euclides e, na sua visão, “gostaram, de um modo geral, porém alguns fizeram críticas e preferiram outro escritor, José Calasans [que tem uma vasta obra sobre Canudos], que obteve as informações diretas com sobreviventes e filhos de sobreviventes, como, por exemplo, meu tio João Régis e tantos outros”.

Sobre a importância atual de Canudos, Régis declara que “diante da conjuntura político-social do momento, o movimento no Arraial de Belo Monte nos serve de reflexão e inspiração para continuarmos lutando em defesa de nossa cidadania”.

“Canudos representa a voz do sofrimento de quem nada tinha e se organizou, conseguindo se destacar, sentindo-se alguém no meio do nada. Hoje, quando vejo estudantes tão jovens lutando por seus direitos, é Canudos que não morre. E isso acontece no mundo inteiro”, analisa Alôncio. “Estas lutas grandes ou pequenas não me deixam esquecer dessa guerra entre Davi e Golias, da qual sofre desde sempre a sociedade.”

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).