Festival literário,

Flica abraça literatura além do livro e projeta Brasil afro-indígena

Edição de 2023 da Festa Literária Internacional de Cachoeira, na Bahia, vai reunir autores, pensadores e artistas que dialogam com saberes ancestrais

27set2023 | Edição #73

O Brasil dos povoados rurais do interior, das comunidades quilombolas e indígenas, e das pequenas cidades de população majoritariamente afrodescendente vai estar no centro do palco da 11ª Flica, a Festa Literária Internacional de Cachoeira. Maior evento literário realizado no Norte e Nordeste, o festival do Recôncavo Baiano acontece de 26 a 29 de outubro e terá almanaque e cobertura especial da Quatro Cinco Um.

Para a edição de 2023, a Flica elegeu o tema “Poéticas afro-indígenas da brasilidade no bicentenário da Independência do Brasil na Bahia”.

A proposta, segundo a equipe curatorial liderada pela professora de história Luciana Brito e pela professora de literatura Mírian Sumica, é promover reflexões em que a literatura extrapola o espaço restrito aos livros e abraça manifestações culturais populares historicamente marginalizadas, como a religiosidade afro-brasileira, o samba de roda ou os saberes ancestrais dos povos originários.

Mais do que mesclar vozes diversas, a Flica pretende se tornar vitrine de uma vasta produção cultural, muitas vezes segregada, de autores, pensadores e artistas que dialogam com valores do “Brasil profundo”, diz Brito. “São pessoas que estão pensando e fazendo novas propostas de sociedade no âmbito nacional, inclusive para nossa sociedade urbana”, explica a professora da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia).


Festival do Recôncavo Baiano acontece de 26 a 29 de outubro [Daniele Rodrigues/Reprodução]

Esse pensamento orientou a curadoria na formulação de debates com ênfase na resistência, luta por direitos e expressões narrativas das comunidades que a Flica busca destacar. A composição das mesas foi pensada, segundo Luciana Brito, para que o tema principal do festival esteja presente em todos os encontros, que vão de mesas de debate e conversas com autores a oficinas, apresentações musicais e exibição de filmes.

“Não temos uma mesa para falar só da questão LGBTQIA+ ou uma mesa apenas com indígenas para falar de assuntos relacionados às demandas dessas populações”, diz a curadora. “Queremos que em todas as mesas as pessoas possam falar desse projeto de Brasil diverso e afro-indígena.”

A intenção das curadoras tem ressonância especial em um evento na Bahia. O estado tem a segunda maior população indígena, a maior população negra e a maior população quilombola do país, de acordo com os resultados do Censo 2022, divulgado este ano pelo IBGE.

Diversidade sem obviedade

A mesa de abertura, em 26 de outubro, terá como convidadas “mães ancestrais”, na definição das curadoras. São a ativista e pensadora indígena Yakuy Tupinambá, líder da comunidade dos Tupinambá de Olivença, em Ilhéus, na Bahia, a mãe de santo Berenice Borges dos Santos, a Dona Biu, marisqueira e sambadeira da cidade de São Francisco do Conde, no Recôncavo Baiano, e Dalva Damiana de Freitas, a Dona Dalva, matriarca do samba de roda de Cachoeira.

No mesmo dia, a professora e pesquisadora Denise Carrascosa vai debater escritos sobre liberdade produzidos durante o cárcere com o advogado Dinaman Tuxá, coordenador da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil ), e a ativista Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias Nascimento e fundadora, com ele, do Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros). Carrascosa e Larkin Nascimento escreveram, respectivamente, prefácio e posfácio da coletânea Submundo: cadernos de um penitenciário, que reúne relatos de Abdias produzidos nos anos 40 enquanto o artista e pensador da cultura negra do Brasil estava preso no Carandiru.

A programação ainda vai colocar lado a lado o pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos, o cacique e escritor Juvenal Payayá e a poeta e ensaísta Leda Maria Martins em uma mesa sobre memória e narrativas ligadas à terra; as artistas visuais Célia Tupinambá, Yacunã Tuxá e a escritora Micheliny Verunschk em debate sobre vozes ancestrais; e as autoras Luciany Aparecida, Marilene Felinto e Auritha Tabajara em uma discussão sobre escrita e construção do imaginário nacional.

A presença do povo nesse processo, tendo como referência a luta pela Independência da Bahia — movimento que teve grande participação popular e consolidou a Independência do Brasil em 1823 — também será foco de mesas. Numa delas, dedicada ao papel da cultura para a reconstrução da própria ideia de independência, estarão reunidos o cantor e compositor Tiganá Santana e as autoras Maria José Silveira e Eliane Potiguara.

Outra mesa terá a líder religiosa Valnizia Bianchi, mais conhecida como Mãe Val, o escritor Sairi Pataxó e a ativista e ialorixá Thiffany Odara. Os três vão falar sobre a construção de imagens populares de emancipação a partir das figuras do caboclo e da cabocla, ícones que representam a participação do povo na Independência do Brasil na Bahia.

Já a ativista Neon Cunha, que em 2014 se tornou a primeira pessoa trans do Brasil a conseguir alterar seus documentos sem laudo médico, vai discutir as relações entre diversidade, arte e democracia com o escritor panamenho Carlos Wynter Melo. Nome proeminente da literatura centro-americana, ele é autor do romance As impuras, que mistura a história de duas mulheres em busca de identidade com a história recente do Panamá. Também está confirmana na mesa a autora mexicana Ximena Santaolalla, ganhadora em 2021 do Prêmio Mauricio Achar, que reconhece novas vozes da literatura do México. 

Mulheres e descolonização

Dar mais visibilidade a autoras que trabalham com temas como emancipação feminina, antirracismo e papel político das mulheres é mais uma preocupação da Flica 2023. A festa terá um encontro entre Eliana Alves Cruz, vencedora do prêmio Jabuti 2022 na categoria Conto com a coletânea A vestida, e a escritora afro-cubana Teresa Cárdenas, que lança o infantil Meu avô Tatanene.

Outro nome internacional confirmado é o da pesquisadora nigeriana Oyeronke Oyewumi, autora de A invenção das mulheres. Ela vai falar sobre novas perspectivas para as mulheres e descolonização ao lado da escritora, psicóloga e ativista indígena guarani Geni Núñez.

Ainda no debate sobre o lugar social do feminino na atualidade, uma mesa sobre “emancipação dos corpos e descolonização das mentes” vai reunir a poeta e produtora cultural baiana Adriele do Carmo, organizadora da coletânea Erótica: versos lésbicos, a cantora Ayô Tupinambá e o autor cearense Stênio Gardel, de A palavra que resta, romance que explora relações entre exclusão social e ocultamento da sexualidade.

Leitura do mundo

Além do predomínio de autoras entre os convidados, a Flica 2023 chama atenção pela ênfase dada a nomes que não atuam diretamente no universo literário. Segundo a curadora Mírian Sumica, a ideia desta edição é justamente incentivar formas de leitura que transcendem a palavra escrita e se abrem para registros orais e musicais.

“O fomento à literatura, que é um dos papéis das feiras literárias, não pode partir apenas da centralidade do livro. A palavra escrita não é nossa única forma de leitura”, analisa a professora da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira). “Pensando no que Paulo Freire nos ensina, a leitura do mundo e a leitura da vida são anteriores à leitura do livro.”


“Poéticas afro-indígenas da brasilidade no bicentenário da Independência do Brasil na Bahia” é o tema da Flica [Egi Santana/Reprodução]

Daí também veio a opção pelo tema geral da festa falar em “poéticas”, termo geralmente associado à poesia mas que, na raiz, diz respeito às “múltiplas artes e múltiplas expressões que despertam a nossa sensibilidade”, diz Sumica. Seguindo essa linha, a Flica reforçou a programação fora das mesas com a exibição de filmes, exposições, apresentações musicais e teatrais. E pela primeira vez serão realizadas atividades na cidade vizinha de São Félix, ligada a Cachoeira pela ponte Dom Pedro II, que atravessa o rio Paraguaçu.

Casa dos Encontros, Fliquinha e Geração Flica

Além da Tenda Paraguaçu, a maior da festa e onde acontece a programação principal, a 11ª Flica terá a Casa dos Encontros, onde autores vão lançar livros ou relembrar publicações importantes enquanto conversam com o público. O espaço é uma novidade da edição deste ano e será abrigado na Fundação Hansen Bahia.

O primeiro encontro da casa será na quarta, 25 de outubro, véspera da abertura oficial da Flica. O convidado é o historiador João José Reis, que comemora os vinte anos da publicação de Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês em 1835.

A Casa dos Encontros ainda recebe Cidinha da Silva, que vai falar sobre a transgressão na literatura negra brasileira ao lado do poeta baiano Jorge Augusto, do recém-lançado O mapa de casa. Também estão programados encontros com Ynaê Lopes dos Santos, de Racismo brasileiro: uma história da formação do país, e Quito Ribeiro, de No canto dos ladinos, entre outros nomes.

Completam as atividades da Flica 2023 a programação infantil da Fliquinha, com contação de histórias, show de mágica e apresentações teatrais, e o espaço Geração Flica, que desde 2019 recebe autores que dialogam com leitores adolescentes. 

Cobertura Quatro Cinco Um

A Quatro Cinco Um realiza um almanaque de doze páginas, que será distribuído gratuitamente em Cachoeira e estará disponível no site da revista, que também publicará matérias sobre o evento durante o festival. Essa cobertura é realizada com o apoio da Flica, que tem patrocínio do governo da Bahia.

Programação das mesas 

11ª Flica, de 26 a 29 de outubro de 2023 , em Cachoeira (BA)
Entrada Gratuita

Quinta-feira, dia 26

Mesa 1 (9h30): Caminhos de luta, estradas de fé, com Yakuy Tupinambá (BA), Dona Biu (BA) e Dona Dalva (BA)
Mesa 2 (14h): Escritos de liberdade, com Denise Carrascosa (BA), Elisa Larkin Nascimento (RJ/EUA) e Dinamam Tuxá (BA)
Mesa 3 (16h): Cantos, contos, histórias para escrever o futuro, com Luciany Aparecida (BA), Auritha Tabajara (CE) e Marilene Felinto (PE)
Mesa 4 (18h): Dias mulheres virão, com Oyeronke Oyewumi (Nigéria) e Geni Núñez (MS)

Sexta-feira, dia 27

Mesa 5 (10h): Memórias da terra, com Antônio Bispo dos Santos (PI), Juvenal Payayá (BA) e Leda Maria Martins (RJ)
Mesa 6 (14h): Visibilidade e resistência, com Ayô Tupinambá (SP), Stênio Gardel (CE) e Adriele do Carmo (BA)
Mesa 7 (16h): A independência vestida de povo, com Mãe Valnizia Bianchi (BA), Sairi Pataxó (BA) e Thiffany Odara (BA)
Mesa 8 (18h): A independência em exercício sankofa, com Eliana Alves Cruz (RJ) e Teresa Cárdenas (Cuba)

Sábado, dia 28

Mesa 9 (10h): O Brasil não conhece os Brasis, com Eliane Marques (RS), Paulliny Tort (DF) e Yaguaré Yamã (AM)
Mesa 10 (14h): Saberes ancestrais da terra, com Japira Pataxó (BA), Rutte Andrade (BA) e Elizandra Souza (SP)
Mesa 11 (16h): Vozes ancestrais reivindicadas, com Célia Tupinambá (BA), Micheliny Verunschk (PE) e Yacunã Tuxá (PE)
Mesa 12 (18h): Há navios no caos, há cura na cultura, com Maria José Silveira (GO), Tiganá Santana (BA) e Eliane Potiguara (RJ)
Mesa 13 (20h): Diversidade, arte e democracia, com Ximena Santaolalla (México), Neon Cunha (MG) e Carlos Wynter Melo (Panamá)

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.