
A Feira do Livro,
Todo branco é beneficiado pelo racismo
Em mesa marcante, Sueli Carneiro e Bianca Santana falaram dos privilégios da branquitude e das conquistas e novos desafios dos movimentos antirracista e feminista
09jun2023 | Edição #70Encerrando o segundo dia d’A Feira do Livro, as escritoras, intelectuais e ativistas Sueli Carneiro e Bianca Santana debateram feminismo negro, conquistas e privilégios da branquitude na concorrida mesa Continuo Preta, mediada pela colunista da Quatro Cinco Um Juliana Borges, que teve falas fortes, contundentes e muito necessárias.
Escritora, ativista, filósofa e doutora em educação pela USP, Carneiro, muito aplaudida em diversos momentos, falou de seu livro mais recente, Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser, publicado pela Companhia das Letras, fruto de sua tese de doutorado, e analisou os privilégios experimentados até hoje pelas pessoas brancas, produto do que o sociólogo estadunidense Charles Mills chama de contrato racial.
“Esse contrato racial é datado, ele nasce com o colonialismo, com a escravidão. E institui o branco como o universal, como o ápice da representação humana. E institui os outros como seres apartados, não seres. E é por isso que o branco se assusta quando é chamado de branco, porque ele se instituiu como universal, como a representação da humanidade”, explicou. Apoiado na ideia de meritocracia, esse contrato produz um processo brutal de exclusão de negros e indígenas e constitui todos os privilégios de que a branquitude goza.
“Esse contrato racial faz com que todo branco seja beneficiado pelo racismo. Mas nem todo branco é signatário desse contrato. E é isso que faz com que brancos e negros possam fazer alianças na luta antirracista”, acrescentou, sob aplausos.
Mais Lidas
Santana – que é jornalista, doutora em ciência da informação e mestra em educação pela USP e lançou o livro Quando me descobri negra, pela editora Fósforo – completou apontando que “se autoafirmar como branco antirracista não significa realmente ser. Tem algo nesse pacto narcísico da branquitude que é instituir uma série de critérios supostamente meritocráticos que reproduzem os seus privilégios. Eu tenho vontade de perguntar quem aqui limpa a própria casa. Isso reproduz a estrutura desigual desse país. Então, eu quero ver coerência. Além do discurso que todo mundo consegue mimetizar, o que desse pensamento de Sueli Carneiro, Charles Mills informa nossas práticas institucionais e também individuais?”, questionou.

Bianca Santana e Juliana Borges na Mesa Continuo preta [Sean Vadaru]
Conquistas e desafios
Representantes de gerações distintas, Carneiro e Santana também falaram das conquistas e novos (e antigos) desafios dos movimentos antirracista e feminista.
Carneiro avaliou que houve avanços nas últimas décadas. Ela relembrou o Tribunal Bertha Lutz, júri simbólico organizado em 1982 pelo movimento feminista para julgar desigualdades sofridas pelas mulheres, em que o ativista, escritor e artista plástico Abdias Nascimento foi a única pessoa negra convidada a participar e, diante da ausência de mulheres negras, se posicionou como representante delas.
“Quando acabou [o tribunal], eu fui atrás do Abdias para agradecer e falei: ‘Foi uma honra ser representada pelo senhor, mas nós vamos libertá-lo dessa tarefa. O senhor não vai precisar fazer isso de novo, porque nós estaremos presentes daqui pra frente”, contou.
“Esse contrato racial é datado, ele nasce com o colonialismo, com a escravidão. E institui o branco como o universal, como o ápice da representação humana. E institui os outros como seres apartados, não seres. E é por isso que o branco se assusta quando é chamado de branco, porque ele se instituiu como universal, como a representação da humanidade”. – Sueli Carneiro
“Acho que isso mudou. O que mudou foi essa presença extraordinária das mulheres negras na cena dos debates feministas. O feminismo brasileiro não tem mais a possibilidade de existir como uma força política sem estar radicalmente assentado na perspectiva que as mulheres negras apresentam, de se considerar gênero, raça e classe. E isso foi conquistado pela articulação das mulheres negras em organizações espalhadas pelo país”, completou.
Para ela, o feminismo negro atual tem um desafio a enfrentar. “Esse feminismo negro, herdeiro dessa tradição, que inclusive se hegemoniza, qual é o projeto dele para emancipar todas as mulheres?”, questionou.
Falando a partir das experiências de uma geração mais jovem, Santana relembrou o assassinato de Marielle Franco em 2018 e apresentou um contraponto. “Isso passou uma mensagem para nós, mulheres negras, de que, mesmo que nosso caminho tenha se alargado, mesmo que uma mulher negra possa se eleger vereadora de uma das maiores cidades do país, ela poderia ser assassinada com muitos tiros, e tantos anos depois não sabemos ainda quem foi o mandante. Então, para a minha geração, tem um marco de que muito avançou, mas tem um limite. Temos muito a comemorar, mas a maior parte das mulheres negras no Brasil segue em condição de trabalho subalterno, com piores salários. A pirâmide é exatamente igual à da época da abolição”.
Carneiro ofereceu prontamente uma explicação: "Cada etapa vencida de uma luta traz novas contradições. Já disse o velho barbudo [Marx]. São novas contradições, e se agudizam, inclusive. E muito do que você coloca é produto dos deslocamentos que a luta antirracista está colocando na sociedade".
Instigada pela mediadora Juliana Borges, Carneiro relembrou uma frase dita há mais de vinte anos – “Entre esquerda e direita, continuo preta” – e deu um “puxão de orelha” na esquerda que, ao contrapor o mito da democracia racial, ofereceu uma perspectiva centrada unicamente na luta de classes, ignorando que persistem mecanismos de exclusão e extermínio da população negra.
“O que falta para a esquerda entender que raça determina classe neste país? Precisa desenhar mais o quê? A esquerda nos promete o reino dos céus, mas ela não entrega. Só tem um jeito de a gente caminhar com a esquerda, que é empurrar ela pra esquerda. Somos nós a esquerda”.
Ao fim, respondendo a uma pergunta do público, Carneiro refletiu sobre sua trajetória. “Se eu me arrependi? Nunca. Eu tenho a convicção de que eu sou guerreira por uma das causas mais justas da humanidade”, afirmou, sob aplausos.
A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.
Matéria publicada na edição impressa #70 em junho de 2023.