A Feira do Livro,

Itamar Vieira Junior e Ana Maria Gonçalves falam de onde vieram suas histórias e o que ainda precisa ser contado

Escritores comentam o sucesso de seus livros e o atual momento do mercado editorial

11jun2023 | Edição #70

Em uma das mesas mais esperadas d’A Feira do Livro 2023, Ana Maria Gonçalves e Itamar Vieira Junior contaram de onde vêm suas obras e o que ainda precisa ser contado. Em uma conversa mediada pela jornalista Adriana Ferreira Silva, os autores também falaram sobre seu processo de escrita e suas relações com personagens como Kehinde, a protagonista de Um defeito de cor, de Gonçalves, Bibiana e Belonísia, de Torto arado, e a Luiza de Salvar o fogo, de Vieira Junior.


A escritora Ana Maria Gonçalves [Sean Vadaru/Divulgação]

A importância de contar histórias silenciadas por séculos foi reiterada pelos escritores. “Nós fomos calados, principalmente nos últimos quatro anos. Vamos voltar a falar educadamente, civilizadamente, generosamente”, disse Gonçalves, que afirma escrever os livros que não achou para ler.

Vieira Junior lembrou o impacto provocado pela leitura de Um defeito de cor, lançado há 17 anos: “Eu lia literatura de qualidade, mas que tratava de uma classe média branca de um outro lugar do Brasil. Ler Um defeito de cor foi muito poderoso, fala de meus ancestrais, do lugar que ocupo na sociedade, atravessa meu corpo.”


O escritor Itamar Vieira Junior [Sean Vadaru/Divulgação]

Para Gonçalves, o que faz livros como Torto arado ou Um defeito de cor serem tão verdadeiros é a capacidade de explicar o país com essa arma tão forte que é a literatura. “Não à toa, escritores e artistas são perseguidos nos regimes fascistas”, disse a escritora, sob aplausos da plateia.

Os dois escritores também falaram sobre o processo de escrita, que envolve muita pesquisa. “Não acredito em inspiração. Tudo é trabalho. A parte de reescrever é a que eu mais gosto. Digo que sou uma reescritora, não escritora”, disse Gonçalves.
Vieira Junior, geógrafo e servidor público há 17 anos, em contato com o Brasil rural, e orientado por uma antropóloga durante o mestrado, diz ter estabelecido uma relação entre antropologia e literatura: “Faço a etnografia da minha imaginação. A imaginação me restitui uma história que me foi arrancada”.

Criadores de personagens amados pelos leitores, eles falaram de suas crias. Para Gonçalves, quando fica claro quem vai contar a história, o resto vem: trama, gênero, musicalidade. Ela contou como conviveu com os personagens de Um defeito, viveu suas vidas, conversava com eles na rua – e do luto de três anos quando terminou o livro. Mas o bom, segundo Vieira Junior, é que “o personagem deixa nossa vida e daí o leitor nos traz notícias dele, não estamos mais sozinhos”.

Segundo ele, seus personagens não são criados, já existem em um plano imaginário e ele vai encontrá-los. Também espelham pessoas conhecidas do escritor, como o seu pai em Moisés, e sua tia em Luiza, personagens de Salvar o fogo.

Gonçalves e Vieira Junior também comentaram o momento do mercado editorial e o sucesso de seus livros – as vendas enormes de Torto arado e Salvar o fogo, a edição comemorativa de Um defeito de cor e sua escolha como tema da Portela no próximo Carnaval.
Quando Gonçalves lançou o livro em 2006, ela se tornou a oitava mulher negra a escrever um romance no Brasil. “Quantos teriam sido escritos se tivessem possibilidades?”, questionou.

A mudança relativa de cenário não foi por o mercado “ser bonzinho”, segundo ela: “Negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+ trazem dinheiro, porque tem um públcio ávido por se reconhecer nessas histórias”.

“Este é um momento novo, parece que a literatura brasileira dos últimos anos passou a entrar na lista de best-sellers. Mas também vivemos a sobrevida da escravidão, aquele ranking das vidas que falam mais e valem menos ainda não foi descontruído”, disse Vieira Junior.

Ele disse que talvez sua geração ainda não veja essa desconstrução, mas professou sua fé na literatura: ”Lendo a gente vive e experimenta a vida do outro e é provável que isso nos transforme como pessoa”.

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34).

Matéria publicada na edição impressa #70 em junho de 2023.