A Feira do Livro,

A violência de cada dia

Geovani Martins e Luiza Romão conversam sobre o difícil equilíbrio entre abordar o cotidiano violento sem estetizá-lo em suas narrativas

10jun2023 | Edição #70

“A literatura ocidental começou com uma guerra”, declama Luiza Romão o seu poema “Ifigênia”, do livro Também guardamos pedras aqui, lançado em 2021 pela editora Nós, e ganhador do Prêmio Jabuti nas categorias Poesia e Livro do Ano. Foi no Palco da Praça d’A Feira do Livro desta noite de sexta, 9, que o público teve a oportunidade de ser hipnotizado pela autora encarnando trechos de alguns de poemas que fazem uma releitura da Ilíada de Homero.


O escritor carioca Geovani Martins [Sean Vadaru/Divulgação]

Após essa performance, Geovani Martins declinou gentilmente o pedido da mediadora, a editora e a crítica literária Luciana Araujo Marques, para ler um trecho de seus livros, os contos de Sol na cabeça e o romance Via Ápia, ambos publicados pela Companhia das Letras. “Eu odeio ler em voz alta os textos de minha autoria”, revelou.

O escritor carioca e a autora paulista, nascida em Ribeirão Preto, terminaram a noite desta sexta na mesa São Paulo e Rio em verso e prosa. A conversa girou em torno da violência nos textos dos autores e da importância da oralidade na literatura – incluindo uma crítica à educação escolar.


Luiza Romão e Geovani Martins [Sean Vadaru/Divulgação]

Martins e Romão são dois nomes da nova geração que mostram a vivacidade da literatura brasileira contemporânea. Romão é poeta, slammer e atriz, e além de Também guardamos pedras aqui, lançou Nadine pela editora Quelônio, em que mostra a investigação de um feminicídio em versos. Às vezes, ela também atua com o grupo Palabreria na peça Garotas mortas, adaptação do livro homônimo da argentina Selva Amada.

Martins, escritor carioca nascido em Bangu, é autor do livro de contos Sol na cabeça (que faz um apanhado sobre a cidade do Rio de Janeiro) e do romance Via Ápia, ambos publicados pela Companhia das Letras, em que retrata o cotidiano de um grupo de garotos que vivem na Rocinha e têm suas vidas abaladas com a chegada da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora).

Literatura salva?

Ambos começaram a conversa sobre como violência perpassa todos os seus textos, mas mantendo uma espécie de ética, que não procura reproduzi-la na narrativa, fazendo com que as vítimas passem por uma segunda violência.

“Essa é a grande pergunta: como tratar da violência sem que a representação da violência seja uma nova violência. Eu escrevo trespassada por essa questão”, explicou Romão, que vê com estranhamento o fato de a literatura ocidental ter começado com “um massacre”, pois a Ilíada trata do extermínio dos troianos pelos gregos. A partir dessa narrativa, as ideias de Democracia e Humanidade são fundadas, um tanto paradoxalmente.


A escritora e slammer Luiza Romão [Sean Vadaru/Divulgação]

“Quando adolescente, passava por um momento interno muito grande e pensava sobre como abordar o tema da violência. E eu venho do Rio de Janeiro, cidade que mata jovens negros todos os dias. Como fazer não passar batido por isso em meu trabalho e como fazer com que não crie uma nova violência?”, refletiu ele. “Penso nas tensões laterais, como envolver aquela cena com coisas que não estão no quadro principal, mas no que está em volta. Gosto de pensar que a expectativa da morte é maior do que a morte em si.”

O ponto central, para ele, é escrever livros que tematizam esse aspecto, mas cuja leitura não deixe o leitor deprimido e sem esperança. É o desejo entre não querer mostrar, mas falar sobre, como resumiu Luiza Romão a partir da observação de Geovani Martins.

Ao responder a uma questão da plateia sobre a influência da escola na sua formação como autor, Martins disse que “a coisa mais chique da minha vida inteira é colocar ensino fundamental incompleto em formulários, porque isso confunde a cabeça das pessoas. A escola me influenciou pouco”. “Tem uma conversa famosa na minha família, em que eu disse: ‘Mãe, preciso sair da escola porque preciso estudar.’” Na sua visão, o discurso de que a educação transforma é perigoso, pois precisamos pensar em como transformar a educação. “Tem esse discurso de que para o escritor favelado a literatura salvou a vida dele. Existe essa expectativa, mas se der um passo para trás, de 2010 para cá, talvez tenham sido esses caras que vieram salvar a literatura brasileira”, afirma. 

Com relação à oralidade, Romão declarou a importância do slam, dos saraus e da poesia declamada na sua formação. Em seu processo de criação, o poema começa primeiro pela palavra e pelo corpo, encarnando a palavra.

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #70 em junho de 2023.