Um caminho para dois

Rebentos,

Um caminho para dois

No infantojuvenil O caminho para as águas, escritora carioca tece a estreiteza entre ancestralidade e destino e questiona os estigmas atribuídos a pessoas com deficiência

23jan2025 • Atualizado em: 14fev2025

Entre as cordilheiras do monte Quênia, o segundo ponto mais alto do continente africano — que algumas tribos acreditavam ser o lar dos deuses — nasce um novo príncipe. E como nos épicos sobre heróis que ainda não sabem de seus futuros triunfais, uma profecia tenta selar seu destino: não será um guerreiro como os irmãos porque é impossibilitado de caminhar. Mas logo a conformidade com os estigmas sociais e a solidão se desfaz e o jovem protagonista de O caminho para as águas (Cepe), da escritora carioca Carla Dawidman, traça a própria jornada através da inesperada amizade com um elefante que também convive com uma deficiência.

Acompanhada pelos traços ricos e detalhados da ilustradora baiana Faw Carvalho, a narrativa faz do menino e do elefante uma só sombra sob o sol, enquanto dá pistas sobre a inevitabilidade das mudanças. Talvez nada permaneça no estado em que está, mas pode ser que a união seja o ponto de constância entre os dois. Juntos, eles transformam toda a comunidade — e quem sabe também os deuses que os observam.

Nesta entrevista para a Quatro Cinco Um, Dawidman fala sobre a criação de histórias que inspirem todas as infâncias, as complexidades dos personagens da obra e os elementos do cotidiano que encontram espaço na literatura e se tornam vitais para a compreensão da vida.

A escritora e pedagoga carioca Carla Dawidman (Acervo pessoal)

Afinal, o que é o caminho para as águas?
É o caminho do reencontro: com o outro, mas principalmente consigo mesmo. Existem caminhos que nos levam a perder de vista quem somos e o que verdadeiramente somos na essência. As personagens protagonistas duvidaram de si mesmas em algum momento — por se enxergarem através do olhar do outro —, mas também reencontraram a própria essência.

E o que a inspirou a escrever esse livro?
As histórias vêm à minha mente como um filme. É como se as personagens existissem em algum plano. Se paro de escrever e retomo anos mais tarde, sei exatamente o ponto em que a narrativa parou e a ideia volta inteira. Quando a narrativa chega ao fim, as personagens já contaram tudo. Existe muita inspiração, mas também muito esforço para escrever.

Como foi contar essa história para as crianças?
Particularmente, gosto de partilhar com o leitor a presença do elemento mágico na narrativa, e esse foi primordial para costurar a trama. Toda boa história é atemporal.

Escrever para crianças é também escrever para as crianças que vivem nos adultos. A criança está mais propensa a se agradar com as boas histórias; elas veem o elemento mágico e não se interrogam, simplesmente vivenciam a narrativa. E quando você consegue agradar a criança que ainda mora no adulto (e esta narrativa faz isso), é porque o adulto também consegue vivenciar a história de alguma maneira. Isso é muito especial.

E quais são os impactos de lerem obras que também abordam ancestralidade, destino e espiritualidade?
Quando oferecemos opções para a leitura, e dentre elas estão livros igualmente diversos, o mundo se amplia para o leitor. Há mais emoção, imaginação e oportunidades. Limitar a leitura às questões batidas (o que eventualmente acontece) não empobrece apenas o olhar de quem as lê, empobrece também o mundo.

A arte é viva e diversa, mas como poderá ser viva e diversa sem livros que traduzam temas como a ancestralidade, o destino e a espiritualidade? Esses elementos fazem parte do que somos neste mundo e é vital que a criança, o jovem e o adulto leiam sobre si mesmos sob a perspectiva dos olhares infantil, juvenil e adulto; talvez assim leitores e leitoras possam encontrar “aquele caminho de volta”.

Ao longo de O caminho para as águas, você traz palavras antigas, de outro idioma. Como teve acesso a elas e seus significados?
Fiz uma pequena pesquisa para dar os nomes às personagens. Cada um deles foi cuidadosamente escolhido de acordo com as características delas. Um nome diz muito sobre alguém, assim como a sua história de vida. Esta foi uma das sutilezas da narrativa delineada no pequeno elefante, que só ganhou um nome quando fez algo grandioso — Wamai, que significa “vindo da água”.

Inserir essas palavras estrangeiras e antigas em livros infantojuvenis pode contribuir para as crianças aprenderem sobre outras culturas, como a de países africanos?
Vejo a imaginação como um barqueiro: é capaz de nos levar a toda parte, ainda que seja um território novo. É claro que a criança não tem tantas referências como o jovem ou o adulto, mas a leitura mais singela pode dar conta disso.

Para aqueles que não tiveram o estímulo da leitura na infância, a imaginação é generosa. Está sempre pronta a guiar o leitor a olhar mais além e, por vezes,para longe da sua realidade. Quando lemos, tudo em nós está mais vivo: a linguagem, a mente, os olhos. O barqueiro é capaz de nos levar muito longe, inclusive a uma tribo africana.

O livro também trata sobre solidão, o estigma destinado às pessoas e animais com deficiência, e amizade, respeito e pertencimento. Como foi escrever sobre esses temas para as crianças?
Acredito que só valorizamos a luz quando estamos no escuro. O mesmo acontece com as forças contrárias em uma narrativa. Para que o leitor valorize uma personagem com um olhar mais subjetivo e/ou uma fragilidade aparente, é preciso que existam personagens com um olhar mais duro sobre a vida. Os opostos estão presentes no cotidiano e no mundo, e se existem na realidade também devem estar presentes na literatura.

Assim como na vida, o leitor tem liberdade para escolher entre uma coisa e outra, isto é, se aprecia aquele que duvida de si mesmo ou um outro que só tem certezas. A questão é a identificação. O leitor se identifica com este ou aquele personagem da história para que a narrativa seja crível e encontre um lugar no seu coração. Quanto mais dualidades há na vida, tanto mais existirá na literatura; e cabe a quem lê escolher o melhor caminho.

Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças e jovens?
É clichê dizer que crianças e jovens precisam ter contato com o livro para que se construa o gosto pela leitura; mas a vida, muitas vezes, é feita de clichês. Acho que o diferencial está na maneira como o livro é apresentado ao leitor.

A literatura é uma conquista diária. Deve ser um oásis em meio a tantos outros estímulos nem sempre agradáveis. Se eu apenas conto um pouco da história para uma criança, sem ler textualmente, e não revelo o final, a curiosidade brotará naquele novo leitor. Ele ficará instigado a ler.

Por outro lado, é fundamental não apenas apresentar a literatura para crianças, jovens e leitores em formação, mas realizar uma boa curadoria de livros. E isso significa escolher narrativas diversificadas e que instiguem a curiosidade, ao invés de apenas mastigar o conteúdo para os leitores. Acredito que a boa literatura emociona, preenche o coração e liberta o olhar.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.