Literatura infantojuvenil,

Um novo olhar

Bel Tatit e Natalia Timerman estreiam na literatura infantil com história sobre menino que passa a usar óculos

16dez2022 | Edição #64

Já imaginou ver o mundo de modo embaçado? Pois é, toda pessoa que tem alguma deficiência, seja problema para enxergar longe ou perto, consegue se identificar com essa história. E é nesse universo que adentra Os óculos do Lucas, de Bel Tatit e Natalia Timerman, com ilustrações precisas e lúdicas de Veridiana Scarpelli, lançado pela Brinque-Book, selo da Companhia das Letras. Os óculos que o protagonista recebe viram uma metáfora sobre novas formas de olhar o que o circunda, borrando as fronteiras entre realidade e sonho. Em entrevista à Quatro Cinco Um, Tatit e Timerman conversam sobre como foi escrever o livro a quatro mãos, o perigo das telas para as crianças e a importância do personagem míope mais famoso da literatura brasileira.

Um dos filhos da Bel se chama Lucas e, no fim do livro, vocês contam que aconteceu uma história engraçada com o Lucas e seus óculos. Como foi essa história?
O Lucas tinha cinco anos quando começou a usar óculos. Um certo dia, decidiu dormir com eles para saber como ficariam seus sonhos. Só contou aos pais no dia seguinte, com um gostinho de “vocês não vão acreditar no que eu fiz!”. A Bel e o Rodrigo, pais do Lucas, são psicanalistas, então sempre fez parte da rotina falar sobre os sonhos. Quando Lucas e Martim (seu irmão gêmeo) precisam ir dormir, Rodrigo costuma dizer que eles podem continuar brincando quando estiverem sonhando. Acho que Lucas levou a sério essa proposta. Esse livro é o produto final de um telefone sem fio. Lucas contou o que aconteceu para Bel, que contou para Natalia, que disse na hora: “Bel, isso é um livro! Vamos escrevê-lo?” E então entrou a Veridiana Scarpelli, ilustradora, na ponta do fio, adicionando lindas cores e traços à sua versão da história.

Como foi escrever o livro a quatro mãos?
Todo o processo dessa escrita foi atravessado, fundamentalmente, pelo fato de sermos mães. Achamos graça juntas dessa história contada por um dos nossos filhos, assim como já rimos de várias outras situações que passamos com eles. Alguns dias depois de saber da história, a Natalia, com sua bagagem de escritora, esboçou um texto inicial e o mandou para a Bel, que o completou, modificou e enriqueceu com sua bagagem de psicanalista. Assim continuamos trocando durante o processo de edição até o livro ficar pronto. Foi divertido e respeitoso. 

Como foi essa primeira incursão pela literatura infantil? Quais foram os desafios? É muito diferentes dos trabalhos anteriores que fizeram, uma vez que a Natalia já havia escrito livros de não ficção e ficção (para adultos), enquanto Bel trabalhou com composição no grupo Tiquequê?
O Tiquequê é um grupo de música infantil conhecido por trazer, na maior parte de suas músicas, a perspectiva das crianças. A Bel levou dessa experiência a importância de apostar na voz e no olhar delas. Se pudermos escutá-las atentamente, ampliaremos nossa visão de mundo e nossa relação com a realidade. Os óculos do Lucas segue essa intenção. O contato da Bel com a escrita foi mais na área acadêmica, por meio do mestrado e doutorado em psicologia; a experiência de escrever um livro infantil com a Natalia foi muito mais leve e livre. Ainda que seja coisa séria e profunda, o universo infantil nos possibilitou brincarmos mais com as ideias, sem tanto compromisso com a formalidade do texto científico. Já a Natalia nunca havia pensado em escrever um livro infantil até se deparar com essa história, que a ela pareceu ter chegado quase pronta, direto da vivência do Lucas. O desafio foi perceber e dar conta das tantas nuances que há num texto curto, mas tão cheio de significados.
 


Ilustrações de Veridiana Scarpelli [Divulgação]

Vocês se inspiraram no Miguilim de Guimarães Rosa, que também era míope?
A primeira inspiração foi a sapequice do Lucas mesmo, mas Miguilim, de alguma forma, está estabelecido em nosso imaginário, e a mudança do olhar para o mundo e do próprio mundo a partir das lentes remete inevitavelmente a ele. 

O livro também é uma metáfora de como ver as coisas de formas diferentes?
O sonho é a realização de um desejo: isso está no cerne da teoria freudiana. Mas o sonho também é criação, invenção, ruptura, construção de novas possibilidades. Neste momento da história da humanidade em que o futuro está concretamente ameaçado pela crise climática, precisamos do sonho para conseguir imaginar — e então habitar — um novo futuro. O livro é sim uma metáfora de como ver as coisas de outro jeito, e é também um elogio à nossa capacidade de sonhar. 

Como foi trabalhar com a ilustradora Veridiana Scarpelli?
A ilustração da Veridiana conseguiu inventar o que já estávamos imaginando sem que soubéssemos, foi essa a sensação ao ver os desenhos pela primeira vez. E o Lucas, que ela não conhecia, ficou bem parecido com a realidade, só que ruivo!

Tem algum livro que vocês gostariam de ter lido na infância?
Teria sido bonito ler Miguilim na infância. 

 

Como incentivar o hábito de leitura entre as crianças?
Incentivar o hábito de leitura hoje é como remar contra a maré. Os adultos também passaram a ler menos livros, com a chegada do celular; a leitura ocupa tempo, exige um sujeito concentrado e reflexivo. Videogame e televisão podem ser concorrentes poderosos, pois a depender da qualidade e da quantidade do uso, tendem a exigir menos foco, produzindo passividade e aquele efeito de chupeta eletrônica. Sejamos realistas: para incentivarmos o hábito de leitura entre as crianças, além de cultivarmos a leitura compartilhada, precisamos limitar as telas, para elas e para nós.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.