Bagagem literária,
Leia que eu te escuto
Casais, amigos e avós e netos se entregam às delícias de ler bons livros em voz alta
16jul2024 • Atualizado em: 31ago2024 | Edição #85Um clássico, já dizia Jorge Luis Borges, não é um livro escrito assim ou assado, e sim lido “com prévio fervor e misteriosa lealdade” por alguém.
Borges procurava quem pudesse ajudá-lo a manter o hábito da leitura anos após ser acometido por uma cegueira. Em 1964, perguntou a um livreiro de dezesseis anos se toparia ler à noite para ele. Já faltava pique à nonagenária dona Leonor, mãe do autor, para tanto. Assim Alberto Manguel, hoje diretor da Biblioteca Nacional argentina, emprestou sua visão para um dos maiores escritores do século 20.
“Claro que gostaria de pensar que foi por minha voz, minha inteligência, sei lá. Mas não é verdade. Borges pedia a muitas pessoas que fossem ler para ele”, disse Manguel em entrevista à Folha de S.Paulo em 1997.
O privilégio da leitura em conjunto não foi só de Borges. Manguel conta que o vício do conterrâneo argentino pelas palavras mudou a vida dele. “Borges de repente me abriu sua biblioteca universal, e de uma forma muito íntima. […] Costumava falar de [Robert Louis] Stevenson ou de [Rudyard] Kipling como quem fala de um amigo. Dizia: ‘Sabe o que me disse o Stevenson outro dia?’”.
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Assimilar em voz alta o que um autor tem a dizer é uma prática comum a crianças ainda não alfabetizadas, que recorrem aos mais velhos para saborear a sopa de letrinhas nas páginas à sua frente. Os adultos, contudo, têm muito a ganhar preservando esse costume. Essa troca é uma ferramenta poderosa para fortalecer elos sociais e afetivos numa sociedade em que todos andamos cada vez mais enfurnados em nosso próprio mundinho virtual. Não só: pesquisas apontam ganhos para leitor e ouvinte, papéis que por vezes se alternam.
Presidente da Associação Brasileira de Alzheimer, o neurologista Rodrigo Rizek Schultz diz que o recurso, com lucros cognitivos bem conhecidos para a infância, é também proveitoso no envelhecimento. “A pessoa é capaz de prestar mais atenção. Em neurociência, todo o estímulo que circule por mais áreas [do cérebro] faz com que a informação fique mais retida.” Um modelo, portanto, que “reduz o estresse e proporciona interação social”, com vantagens para a memória, o humor e as funções cognitivas de modo geral, segundo Schultz.
Paixão blindada
Quando a vista começou a fraquejar, Ruth Rocha recorreu à família para blindar a paixão pela literatura. Aos 93 anos, a autora de Marcelo, marmelo, martelo e outras dezenas de livros infantis conta com a irmã Rilda, dois anos mais velha, e o neto Pedro, de 25 anos, para acudi-la na missão.
Com Rilda, socióloga de formação como a irmã, a rotina começou nos almoços de sábado. Mas veio a pandemia de covid-19, quando os encontros eram desaconselhados. “Ela me propôs telefonar todos os dias.” Assim, as histórias continuariam, num formato que prevalece até hoje. De Italo Calvino a obras sobre física, elas leem de tudo juntas, sempre no fim da tarde.
Já somam 55 livros, e cada leitura toma o ritmo que precisar. A atual, Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, é um colosso de quase mil páginas. “Enfeita minha velhice, eu que não posso fazer muita coisa.”
‘Gostei mais do Pedro lendo ‘Cem anos de solidão’ para mim do que quando li sozinha’
A avó ainda recebe Pedro em casa duas vezes por semana. Com ele é um show à parte: Ruth o define como expressivo, pela mania de simular a voz dos personagens. Ela apreciou particularmente uma sessão de Cem anos de solidão, uma das obras-primas de Gabriel García Márquez. “Gostei mais do Pedro lendo para mim do que quando a li sozinha.”
O poeta Fabrício Corsaletti, outro leitor que Ruth recrutou, namora a filha dela, Mariana Rocha. Mestre em artes visuais e especialista em moda, Mariana também adora que leiam para ela, papel que o parceiro cumpre com gosto. O casal, que mora em casas separadas e fica junto nos fins de semana, seleciona os livros da vez nas manhãs de sábado e domingo. “Eu leio, Mari ouve, me disperso se outro lê. Ela é superconcentrada e sempre acompanha.”
O hábito os escolta desde 2007, início do relacionamento. Um poema de Dylan Thomas traduzido por Ivan Junqueira, “Colina das samambaias”, fez parte da primeira leva. Ao longo dos anos, ganhou companhia de escritos de Karl Ove Knausgård, Roberto Bolaño e um catatau de japoneses e franceses. Fabrício e Mariana enfrentaram a dois “da epopeia que foi ler Victor Hugo”, ela lembra, à Pornopopéia, do amigo Reinaldo Moraes.
Enquanto Fabrício lê, Mariana tem macetes para manter o foco: joguinhos ou bordado. “Algo que ajude a concentrar, ou confesso que vou olhando para a estante, o quadro, a janela, me disperso.” E se “por algum motivo vou lendo sem prestar atenção”, conta o poeta, “a Mari não entende, há uma sintonia fina de os dois estarem igualmente atentos, ou não dá certo”.
Como não se veem muito durante a semana, eles encontraram nesse formato uma oportunidade de compensar o tempo perdido. “Teria como cada um virar para o lado e ler um livro”, diz Mariana, mas a dinâmica compartilhada faz mais sentido. “É muito bom, os livros não ficam esquecidos, a gente lê com muita profundidade.”
Educadora por quatro décadas, Lucia Wajskop vai ao menos três vezes por semana à casa da mãe, de 87 anos. Senta-se com ela numa sala onde o janelão dá para uma praça no Ibirapuera. Continuam aí um ritual que se estende desde 2019: as duas se alternam lendo uma para a outra trechos de títulos, clássicos na maioria.
Começaram com Grande sertão: veredas, “um livro que me intimidava”, admite Lucia. Veio da mãe a ideia de encarar João Guimarães Rosa em dupla. Léa Neustein Wajskop recebeu pouco depois o diagnóstico de Alzheimer. A memória recente dela é ruim, conta a filha. Daí estabelecer a tradição de ler em voz alta, ainda que a matriarca não consiga captar o enredo na íntegra.
Léa repete sempre as mesmas palavras, como atestar “que o dia está calmo, as árvores nem se mexem, não tem nem um ventinho” conta Lucia. Para ela, a percepção espelha a vida da mãe, em que “nada acontece”. Depois de Dentes, de Domenico Starnone, mãe e filha agora dividem as páginas de A mulher ruiva, de Orhan Pamuk. “A leitura tem um lugar especial”, afirma Lucia. “Tem narrativas, personagens. Preenche e traz vida.”
Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.
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