Ondjaki
Deslembramentos
o afecto dentro da palavra ‘quintal’
eis o grande palco urbano de tantas decisões, tantos erros, tantas estórias e tantos funerais. em Luanda, uma rua pode ser fechada e transformada em quintal
25jun2024mais além dos sonhos repousa uma palavra que nos acalma depois das grandes chuvas.
é como se no chão se abrisse uma enorme janela; um tapete como passagem para outros mundos. o afecto. as aprendizagens. a lentidão da comida. tudo, tantas vezes, cabe na palavra quintal.
(…)
(se eu tivesse que falar num quintal eu teria que entrar em câmera-lenta pela porta da frente do quintal da tia Rosa e do tio Chico, no Makulusso, e olhar de longe um cágado escondido atrás daquela planta que tira a dor de ouvido e o outro cágado a mergulhar de novo na pouca água do pequeno lago, à minha direita a larga gaiola das rolas, o portão pequenino para entrar no verdadeiro quintal, do lado direito a primeira porta com o quartinho que era um quarto-frigorífico onde o tio Chico guardava as carnes e os peixes, depois outra porta para o quartinho-só-bem-gelado onde, lá dentro, ficava o barril de cerveja em uso mais um de substituição, e cá fora ficava a torneirinha e o banquinho onde mais tarde eu subiria para tirar cento e noventa e sete finos entre as dezoito horas e as dezanove e quarenta e cinco, para o tio Chico, para o lobo, para o Hugo, para o Vaz, para o Mogofores, para o mudo, para a tia Rosita, para a minha madrinha tia Rosa, para a avó Graziela, para o Lima e para um camarada de blusa castanha que agora não lembro o nome, ah… se eu tivesse que falar num meu quintal agora, eu iria para esse quintal oblíquo cujas cores agora me fogem mas ainda o arrepio é o mesmo de sentir os cheiros da cozinha e das mãos da tia Rosa, antes da doçura das palavras, do riso e do encantamento dessa criança a viver exactamente o presente que ali, durante alguns instantes, lhe cabia viver em plenitude.)
(…)
podemos ler num quintal um local de reencontro. a parte da casa onde podem caber mais e mais pessoas. o quintal das festas. o quintal dos noivos. o quintal das crianças. o quintal do gatuno. o quintal dos gatos vadios. o quintal do beijo. o quintal das árvores que já não existem, quem viu, viu. o quintal da avó sentada a falar e mesmo com pressa não podes sair nem desviar o olhar. o quintal de uma queda solitária e proibida. o quintal de ir roubar pitangas ou gajajas ou mangas. o quintal da melhor festa do mundo onde nem foste convidado. o quintal de ver o sol nascer e a festa ainda a acontecer. e todas as margens internas de um quintal.
eis o grande palco urbano de tantas decisões, tantos erros, tantas estórias e tantos funerais. o quintal pode virar, facilmente, o epicentro da transvestida cultura urbana. e, em Luanda, mesmo um apartamento pode ter quintal. o terraço de um prédio vira quintal. um barco parece ter quintal. e uma rua pode ser fechada e transformada em quintal.
e olhar. e ver. e sentir: a chuva cair no quintal, trazer o cheiro novo, assentar as areias, levar as folhas velhas. depois da chuva, é preciso limpar o quintal. ou sentar nele a contemplar o mundo que acaba de recomeçar.
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Ondjaki
(…)
é como se no céu se abrisse um enorme chão, sem tapete de passagem para outro mundo. às vezes penso que ouvi uma voz sussurrar: foi o afecto quem inventou a palavra quintal.
tudo, tantas vezes, dentro da palavra quintal.
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
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