Crítica Cultural,

Janio e o Doisladismo

A demissão do jornalista é sintomática da lógica de que antiesquerdismo é sinônimo de oposição e independência intelectual

22dez2022 | Edição #65

No Webster Tabajara da crônica política, doisladismo é a palavra do ano. Do ano não, dos últimos quatro anos, quando parte significativa de comentaristas e da chamada “grande imprensa” achou por bem tratar como democrata um fascista com focinho, rabo, orelha e cheiro de fascista. Tudo em defesa de um suposto pluralismo em que a busca do “outro lado” mal disfarça a sanha caça-clique que virou régua e compasso para o jornalismo em geral e, em particular, para o jornalismo de opinião.

Em nome dessa fraude intelectual, o país devastado pela Covid-19 foi exposto a debates entre cientistas e estrupícios antivacina, entre pesquisadores e milicos vendedores de cloroquina. Na mesma batida, o charlatanismo foi contemplado em variados níveis, dos terraplanistas avulsos ao cartomante da Virginia, aquele que fez a cabeça e partes mais recônditas da anatomia de boa parte da escumalha ainda hoje estacionada no Planalto.

A mesma lógica, ainda que em tons menores e harmonias mais sutis, vem dando o tom do noticiário depois de 30 de outubro. Diante de um governo do Petê, mesmo que apoiado por gente de variada extração ideológica, começa a se delinear o antiesquerdismo como sinônimo imediato de oposição. E, o que é pior, como garantia de independência intelectual.

Janio de Freitas, 90

Novos e velhos

A demissão de Janio de Freitas da Folha de S. Paulo é um marco dos novos tempos. Sob a infalível e esfarrapada justificativa de contenção de gastos, o jornal achou por bem conter em suas páginas 42 anos de independência de um dos poucos, pouquíssimos jornalistas que nem por um minuto baixou a guarda diante das invectivas do Cavalão contra a vida, a lei, a democracia e a inteligência. Se a demissão de Janio não é política, o patriota agarrado ao caminhão é um Che Guevara.

Janio é, aos noventa anos, um partisan em potencial do novo governo e, enquanto tal, não tem lugar no expediente da Folha

Na lógica rombuda do doisladismo, Janio é, aos noventa anos, um partisan em potencial do novo governo e, enquanto tal, não tem lugar no expediente da Folha — assim como deixaram de ter Marilene Felinto, Gregorio Duvivier ou Karla Monteiro. Marcelo Coelho decidiu sair por conta própria, deixando clara sua motivação numa coluna de despedida: “Num processo longo e implacável, a Folha foi se alienando do que era e do que significava para seus leitores. Envelheceu. Janio, não”.

Alegrai-vos, portanto, arrivistas! Nas redes sociais, caprichem nas diatribes contra os “identitários”, louvem Caetano Veloso cantando gospel de quinta categoria, acusem “a esquerda” de desprezar os evangélicos, nos façam entender a densidade da música sertaneja desqualificada por intelectuais, condenem a politização “de tudo”. É chegada vossa hora! Nem que seja para um freelazinho.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #65 em janeiro de 2023.