Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Contra os hipsters

Para eles, o que importa é plantar a salada que comem no quintal de uma casa gentrificada e dar um rolê com aqueles óculos escuros herdados do avô

11abr2019

Hipsterismo, assim como empatia, feira orgânica e David Foster Wallace, é um dos flagelos de nosso tempo. Aliás, bom-mocismo, comida com bula e escritor de bandana são recorrentes no repertório da turma tatuada e barbuda que a cada gole de cerveja artesanal ajuda a enterrar a espontaneidade do mundo.

Na década de 1940, hipster era um sujeito que expressava em gíria, comportamento, roupa e música seu profundo desacordo com a sociedade careta. Filhos da geração perdida, foram pais dos beatniks e antepassados ilustres de hippies, punks, darks e grunges. Até que reencarnaram como paródia nessa contracultura conformista que não quer afrontar nada nem ninguém e se contenta em afirmar sua diferença pelo consumo dito “diferenciado”. 

A princípio e à primeira vista, o hipster é crítico da padronização consumista da classe média. Cultua o que é supostamente personalizado e, nostálgico de butique, vive de referências do passado — de um passado específico ou de qualquer passado mesmo. Para eles o que importa é plantar a salada que comem no quintal de uma casa gentrificada (pobrinha por fora, reformada por dentro) e, também, dar um rolê com aqueles óculos escuros herdados do avô — que, vejam só, era cool e não sabia.

O hipster ritualiza tudo, como se tentasse destacar cada gesto ou atitude de nossa miserável existência. Ir ao barbeiro, andar de bicicleta ou comer um doce ganham um sentido transcendental que eles negam de pé junto quando são flagrados no ato. Negam, é claro, para reforçar a distinção que, acreditam, só é compreendida pelos iguais. Longe da forte codificação visual do hippie ou do punk, os hipsters formam uma maçonaria da afetação.

Não há notícia de hipster contador ou técnico em refrigeração: todos ganham a vida com trabalhos ditos criativos. Há grande incidência de designers e incidência maior ainda de ocupações não definidas que se pautam pelo espírito, com o perdão da palavra, “curatorial”.  Ou seja, gente que não produz nada mas seleciona camiseta, livro ou patinete para quem está disposto a comprar não apenas um produto, mas uma história.

O chamado, desculpem de novo, “storytelling” é o último refúgio do narrador hipster. Também conhecido como lorota, é uma narrativa que justifica o caráter de exceção e originalidade de qualquer coisa, do brigadeiro ao boné. Num restaurante que serve caipirinha em vidros de maionese (por que, ó Senhor, por que?) é possível saber que os ovos de seu omelete foram chocados ao som de Belle & Sebastian pelas galinhas Chiquita e Loló, que se alimentam exclusivamente da ração orgânica feita por um jovem ensimesmado, de bigode anacrônico, que sabe tudo da dieta das penosas e do cinema de Wes Anderson.

A lorota, quer dizer, o storytelling faz parte do que o El País já chamou de “toque de Midas” do hipster: tudo em que ele bota a mão encarece. Pois um dos prazeres do hipster é pagar caro pelo que é barato ou, melhor ainda, vender caro o que é barato. Não vale cobrar mais caro por, sei lá, acrescentar trufa a um picadinho safado — seria óbvio demais, tangível demais. Hipster que é hipster cobra pelo inefável e, simplesmente, serve o mesmo picadinho safado em louça velha e vagabunda. Mas no cardápio garante que o prato traz a memória afetiva da casa da tia Carmen, circa 1973.

Calado, o hipster é um poeta. Quando faz proselitismo supostamente político, ou melhor, sustentável, é um desastre. O exclusivismo de pequeníssimos produtores diletantes, com ecos de conscientização, é a contrafação do restaurante estrelado. Pois política aqui não quer dizer bem comum, mas autossuficiência de um circuito de gente que faz pão, geléia ou sorvete por hobby e gente que compra tudo isso demonstrando superioridade moral — um circuito tão azeitado e excludente quanto a sociedade de consumo que pretendem criticar. Não se busca popularizar comida saudável, mas inventar alguma forma de torná-la exclusiva. Já ouvi dizer que é possível “assinar” cesta de legumes ou pão como eu assinava o Jornal do Brasil.

Se num passado hippie eu teria horror de ser careta, no presente hipster me orgulho de sê-lo. Me orgulho de usar camisa pólo, de beber cerveja industrializada “com gosto de milho”, de café vagabundo no copo do botequim sem graça, de barbearia rapa-porco e, dependendo do que tentam me empurrar, sou capaz até de curtir um agrotóxico. Bicicleta? Só de aluguel. De preferência patrocinada por banco.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).