Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Coach de esquerda, versão gospel

Denunciar suposto preconceito contra evangélicos é o novo caminho de quem vive de vender indulgência aos isentões

07jul2022 | Edição #60

O coach de esquerda, oportunidade de negócio para analistas e colunistas que nasceu da necessidade de vender indulgência política aos isentões de 2018, amplia seu market share com os nem-nem de 2022. Com a proximidade das eleições, deixa de ser ocupação sazonal para se tornar full time job — no português de coach, um trabalho em tempo integral.

Na impossibilidade de, diante das pesquisas, praticar negacionismo estatístico e enlutado pelos natimortos da Terceira Via, resta ao coach fazer como manda seu primo pobre, a autoajuda, e se reinventar. Na nova versão, o coach se concentra em apontar os equívocos da esquerda no tratamento dos evangélicos, cujos votos decidiriam se o Planalto continuará a falar em línguas pelos próximos quatro anos.

Como todo coach, tem o conservadorismo por princípio, a platitude por base e a despolitização por fim

O coach de esquerda, como todo coach, tem o conservadorismo por princípio, a platitude por base e a despolitização por fim. Por isso declara-se, antes de mais nada, um defensor da liberdade religiosa — afirmação contundente como um meme, que poderia sair da boca de um pastor ou de um meganha. Isso posto, procura demonstrar, a cada análise ou reportagem, suposta cegueira e preconceito contra grupos cujas manifestações públicas mais frequentes esxudam cegueira e preconceito de fato.

Como é comum entre seus pares, o coach de esquerda trata o mundo como balcão e toda e qualquer interação como prospecção de novos clientes. E o cliente, já dizia a sabedoria dos coaches e das quitandas, tem sempre razão. Ou seja, para conquistarem novos fregueses, ou melhor, eleitores, pessoas engajadas em causas humanistas urgentes como a descriminalização do aborto devem de algum modo atenuar suas convicções.

Contradição convicta

A disposição e a frequência com que o coach aponta as faltas da esquerda em relação aos evangélicos não encontra paralelo nas análises que faz dos grupos religiosos. A cada vez que recorre à história, a pesquisas e números para contextualizar uma variedade complexa de denominações religiosas, o coach prefere não mencionar que partes expressivas desses grupos estão inapelavelmente emboladas com projetos de poder e trabalham diuturnamente pela corrosão do Estado laico.

Hábil na omissão por conveniência, prefere não lembrar que a suposta lição das urnas resultou no fortalecimento dos alicerces de um governo fascista, violento e discriminatório

Moralista envergonhado, o coach aponta o resultado das eleições de 2018 como a prova mais eloquente de uma vingança, a dos oprimidos evangélicos, contra os opressores negligentes da esquerda. Hábil na omissão por conveniência, aí também prefere não lembrar que a suposta lição das urnas resultou, na prática, no fortalecimento dos alicerces de um governo fascista, violento e discriminatório que despreza valores cristãos observados pelo mais empedernido dos ateus.

No mundo dos coaches de esquerda, o preconceito contra os evangélicos é sinal inequívoco de intolerância religiosa. Curiosamente, em suas diatribes didáticas não figuram os constantes ataques a terreiros de religiões de matriz africana, demonizadas abertamente em toda e qualquer oportunidade — até o ponto de, mesmo fora do âmbito estritamente evangélico, filhas terem sido separadas de mães por frequentarem cultos de umbanda e candomblé.

A tolerância religiosa pregada pelos coaches de esquerda tem pouco a ver com compreensão crítica e passa, me parece evidente, por uma normalização de expressões fundamentalistas. Da ocupação de ministérios ao pastor da esquina, os atos de preconceito e discriminação dos religiosos seriam meros desvios de uma “doutrina original” — o que, na prática, não faz diferença ao disseminar moralismo e violência.

Os nem-nem de 2022 sem dúvida renovaram a clientela dos coaches: é gospel para seus ouvidos se inteirarem, semana após semana, de mais essa inapelável deficiência da esquerda, a inimiga certa das horas incertas. Mesmo que para isso se ajude, uma vez mais, a eleger um reconhecido inimigo da democracia, do Estado de direito e da tolerância que dizem prezar. É, uma vez mais, chegada a hora.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.